domingo, 31 de julho de 2016

O suspiro e a laje

Dia de bater laje. Dia de festa. (Publicado originalmente no Facebook em 31 de julho de 2015)
Dia de bater laje. Dia de festa.

Quando a gente está na faculdade, não vê a hora de se formar e começar a trabalhar. Mas se tenho um conselho para o estudante de Arquitetura hoje é: não tenha pressa. Os anos acadêmicos são muito bons e, com todo respeito, as meninas, futuras arquitetas, costumam ser lindas, muito bonitas mesmo.

Elas andam pelos corredores com suas sapatilhas hippies e saias floridas. Estão sempre perfumadas. Trazem sempre um sorriso no rosto, de modo que a preocupação que a gente tem nesta época da vida é se vamos assistir a uma palestra do Christian de Portzamparc, ou se vamos esticar a tarde até uma estreia no cinema - quem sabe um filme com Uma Thurman, dirigida por Quentin Tarantino.

Ao se formar, tudo isso acaba para quem desiste de fazer o mestrado na sequência. Você começa a fazer projetos e acompanhar obras, e o que você vê pela frente? Só peão. Não tem mais meninas perfumadas, apenas gente barbada usando a calça surrada pela segunda semana seguida. Eles até sorriem, mas lhe faltam alguns dentes, e algum charme.

As questões filosóficas dão lugar ao pedreiro perguntando onde a gente quer colocar o suspiro na obra. Que diabos é esse negócio de suspiro? Explica melhor? Ah, é o respiro! Para ventilar o ramal do esgoto. Melhor colocar junto com a prumada para o pavimento térreo. Quando o suor chegar na sobrancelha, você se lembrará dos bons dias que teve na faculdade.

Mas deve ter alguma coisa boa nesse negócio de obra...

Tem sim, são nas construções onde o patrão é generoso e libera o tradicional churrasco no dia de bater a laje. É um dia de festa. Mais uma família que ganha um teto, literalmente. E a gente se diverte com os peões, se vestindo como um deles. Botina no pé e muitas piadas na cabeça.

E toca reclamar da presidenta e do governador, por causa do caminhão betoneira que atrasou. É o nosso time de futebol que vai ganhar e o time do outro que perdeu. Tem gente que prefere passar o dia trancado num escritório, conferindo balancetes. Hora de virar o espetinho na churrasqueira, improvisada com tijolos de barro que serão requeimados quando o carvão arder.

Subitamente a gente lembra que tem um diploma e recupera a compostura, com aquela sensação de meta cumprida, pensando na esposa cheirosa que está em casa, e na garotinha que, se um dia também cursar Arquitetura, vai ficar na doce memória de um colega de classe, que estará acompanhando a concretagem de uma laje dentro uns 30 e poucos anos.

E se algum estudante se meter a besta com a minha menina, eu estarei lá, com olhos de lince! Eu sei como pensam esses caras. Já fui um deles.

quinta-feira, 28 de julho de 2016

A mais pedida em Sarajevo

O ambiente acolhedor da Cantina Província di Lucca, em Atibaia. (Publicado originalmente no Facebook em 01 de dezembro de 2015)
O ambiente acolhedor da Cantina Província di Lucca, em Atibaia.

Sou casado há seis anos, tenho uma filha de dois anos e meio, mas meu pai ainda me dá ordens. Ele disse que eu tinha que ir para Caçapava visitar os parentes. Ele tinha razão.

O evento seria uma festa de aniversário de um casal de pequenos primos, e o clã Tosetto também havia ganho um casal de caçulas. Eram quatro presentes para comprar e a italianada que me perdoe: fui até as Lojas Americanas da minha cidade aproveitar as ofertas da Black Friday.

O lugar estava cheio, mas ninguém levou o CD do U2 com os melhores hits dos anos 90. Estava custando menos de oito reais - quase dois dólares. O grilo da minha consciência disse que eu poderia escutar essas músicas de graça no Deezer, mas quer saber? Eu me comportei direitinho neste ano.

O domingo chegou. A família entrou no carro e assim que ingressei na Rodovia Dom Pedro começou a tocar "Miss Sarajevo" - um dueto de Bono Vox com Luciano Pavarotti. Na paisagem o céu nublado fazia um dueto também, mas com os raios de sol querendo nos aquecer diante dos contrafortes da Serra da Mantiqueira.

Era tempo de primeira comunhão e de falar nomes de pronúncias difíceis. OK: a letra não tinha nada a ver com a situação, mas os acordes de violinos misturados com as lembranças da minha juventude, dirigindo um Fusca naquela estrada, valeram os centavos investidos naquele álbum.

O plano original era esticar a viagem até São Luiz do Paraitinga, pois há muitos anos comi uma broa de milho naquela cidade histórica, que me deixou com vontade de voltar lá um dia. Mas a fome apertou bem antes e entrei em Atibaia.

Lembrei que a Cantina Província di Lucca havia se mudado de Joanópolis para lá, mas esqueci de anotar o endereço. Pensei que poderia ter a sorte de encontrar o restaurante por acaso e me ocorreu de parar na primeira banca de jornal que avistei, pois talvez alguém poderia me informar algo.

Parece roteiro de cinema, mas o primeiro senhor que me atendeu disse que morava ao lado da cantina, e que eu poderia seguir ele em sua moto. Estamos no Brasil mesmo? Obrigado, Seu Chico!

Era apenas a terceira vez que almoçaríamos naquele estabelecimento, sempre num endereço diferente. Muito pouco para que o André Fabiano e o Gino Dinelli se lembrassem de nossas feições. Não importa. Eles são muito bons no que fazem.

Chegamos cedo e fomos os primeiros clientes da jornada. Era dia 29 e eu só poderia pedir um nhoque da bem aventurança, enquanto percorria com o olhar todos os mimos daquela decoração vernacular e aconchegante.

O garçom tirou uma foto nossa, que eu poderia postar aqui, estocando o arquivo digital de graça. Mas acho que mandarei "revelar" a imagem com o lindo sorriso maroto da Carol. Vou guardá-la numa caixa de sapatos do lado da minha coleção de discos, junto com o CD do U2 comprado numa Black Friday.

Veja também:

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Um estranho nas festas

A Igreja da Candelária no Rio de Janeiro, próxima ao Teatro Municipal, fotografada em meados de 1996. (Texto escrito originalmente para o Facebook em 24 de julho de 2014)
A Igreja da Candelária no Rio de Janeiro, próxima ao Teatro Municipal, fotografada em meados de 1996.

Nos já nostálgicos anos 90 eu cursava Arquitetura em Campinas. No terceiro ano, em 1996, parte de nossa classe fez uma viajem de estudos ao Rio de Janeiro. Ficamos uma semana visitando a nata das obras emblemáticas da Cidade Maravilhosa. Aprendemos mais naquela semana do que num semestre inteiro de aulas teóricas.

Uma das professoras do grupo era bem relacionada no ambiente cultural fluminense e conseguiu alguns ingressos para uma apresentação de um conjunto de cordas no Teatro Municipal. Acabei aceitando um deles, uma vez que a maioria preferiu ir para um bar em Copacabana, e não sou de beber.

Vesti a melhor roupa disponível na mala: uma calça jeans e uma camisa polo com listras horizontais amarelas, azuis e cinzas. Pegamos um táxi: eu, a professora e mais três alunas. Chegamos ao suntuoso Teatro e senti uma angústia difícil de disfarçar, pois estava diante de uma conferência de pinguins da Antártida. Mentira. Eram senhores vestidos de smoking.

Adentramos no charmosíssimo vestíbulo do lugar. Eu de camisa pólo listrada no meio da hight-society, com atrizes da Rede Globo, colunistas de jornais, artistas diversos, solteironas, playboys e gente apavonada. Chamei tanta atenção que um carioca da gema nem se importou de comentar alto: "esse cara está elegante, hein?"

Uma das minhas colegas percebeu a situação e sentiu compaixão. Ela estava vestida feito uma diva de Hollywood e por onde passava os queixos desabavam (e não, nunca fiquei com a moça). Ela chegou perto de mim, pegou em meu braço e começamos a circular pelo imenso hall.

Passamos perto daquele sujeito de novo e fuzilei ele mentalmente: "toma, seu otário!" - Tenho certeza de que ele escutou meu pensamento pois ouvi o pensamento responsivo dele: "filha da mãe, que moleque folgado!"

Dezoito anos depois...

Fui convidado para ir a um evento, a inauguração da sede do CAU - Conselho de Arquitetura e Urbanismo - em Campinas. Ocorre que subestimei a solenidade do mesmo. Lá vou eu, de novo, com minha camisa pólo, agora só com listras azuis e brancas e sapatos puídos de tanto visitar obras.

Chego lá e o pesadelo é recorrente: todo mundo muito bem vestido e gente graúda - do sindicato, da política e da universidade - conversando em rodinhas. Desta vez não havia ninguém para me socorrer. Numa situação dessas só tem um jeito, que é lembrar da música do Renato Russo:

"Festa estranha com gente esquisita, eu não tô legal..."

Naquela noite engatei a recomendação do Leão da Montanha, personagem dos desenhos de Hanna-Barbera:

"Saída pela direita!"

E saí de fininho.

sábado, 23 de julho de 2016

O que vem fácil vai fácil

O Monumento Los Dedos foi erguido pelo artista plástico chileno Mario Irrazábal em 1982, na Parada 1 da Praia Brava de Punta Del Este, no Uruguai. Fotografei o local em 1997.
O Monumento Los Dedos foi erguido pelo artista plástico chileno Mario Irrazábal em 1982, na Parada 1 da Praia Brava de Punta Del Este, no Uruguai. Fotografei o local em 1997.

O ano de 1997 foi muito difícil para a nossa família. Estávamos vivendo um luto pesado, com o qual ainda não aprendi a lidar plenamente. O que me ajudou muito na época foi uma viagem que aceitei fazer com dois tios, o Gijo e o Dário, para o Uruguai.

O Dário é marceneiro e gosta de fazer móveis refinados, com madeira maciça e ferragens especiais. Naqueles dias ele inventou de elaborar uma cristaleira com puxadores de bronze, que ele encomendou numa fundição em Montevideo. Como eram artefatos pesados demais, a desculpa para o convite era que eu ajudaria a transportar os objetos no avião. As passagens foram presentes do Gijo.

Desembarcamos no pais na véspera da Sexta-feira Santa, sem reservas em hotel. Batemos pernas pelas ruas da capital até encontrar um pouso barato no centro histórico da cidade, que tinha um elevador de portas pantográficas fantasmagóricas. O casal Manoela e Carlos se hospedou por lá também, em 1969. Ao menos era que o que estava rabiscado na porta do armário.

Na primeira noite fomos numa pizzeria e escolhemos um calzone. Estava tão salgado que a sede veio implacável de madrugada. E tome bater pernas novamente, até encontrar um bar que nos servisse uma Coca-Cola gelada, que só perdeu em sabor para o refrigerante de pomelo que experimentamos no Mercado do Porto, no dia seguinte.

Naqueles dias os cinemas estavam exibindo as cópias restauradas da série "Stars Wars" - "Guerra nas Estrelas" para os brasileiros e "La Guerra De Las Galaxias" para os uruguaios. Curiosamente a sala que visitamos tinha a inclinação do piso invertida, com a tela no lugar mais alto do recinto.

Pegamos um ônibus para Punta Del Este e tive a oportunidade de conhecer a Casapueblo, construída aos poucos numa encosta íngreme diante do mar, pelo arquiteto uruguaio Carlos Páez Vilaró, falecido em 24 de fevereiro de 2014, no dia em que completei 38 anos.

Caminhávamos o dia inteiro. O Tio Dário tinha a audácia de usar calças sociais com chinelos Havaianas, num tempo em que esse tipo de sandália não era algo cult, mas apenas um ADP - minha sigla para "Atestado De Pobreza". Comentei algo do tipo com ele, que me respondeu:

- Estes chinelos tem mais quilometragem do que você, na sua vida inteira.

Ele de chinelos, eu de mocassim com meias brancas, e o Tio Gijo com seu indefectível 752 da Vulcabras, ingressamos num cassino. Cristão protestante devoto, não quis apostar em nada e fiquei vendo eles perderem as fichas num caça-niqueis, até que eles me pediram para tentar um vez.

As moedas começaram a cair em cascata. Enchemos o pote, literalmente. Meus tios me encorajaram a continuar apostando e, na tentação, fui perdendo tudo de novo, até que resolvi parar. O que sobrou foi suficiente para comprar um relógio suíço da marca Swatch, na própria loja do cassino.

Era um lindo relógio: caixa cromada, pulseira de couro, visor analógico azul marinho, bem ao estilo de James Bond. Por falar em 007, tenho certeza que vi o ator Sean Connery caminhando pelas ramblas em Montevideo.

Parei numa vitrine e reparei no senhor usando chapéu de pescador, com seu metro e noventa de altura e ombros largos, pulsos idem. Seus óculos não escondiam suas sobrancelhas pontudas e seu cavanhaque grisalho não escondia os vincos nas bochechas. Era Sean Connery, sem dúvida. Apenas nunca pensei que ele combinasse bermuda com camisa de mangas compridas e botas de montanhista.

Ele olhou para mim e sua expressão facial parecia me dizer:

- OK, você me reconheceu. Por favor não faça alarde.

Usei minha fleuma para tranquilizá-lo. Eu estava com um relógio suíço no pulso esquerdo. Pressionei meus lábios levemente e abaixei a cabeça num gesto afirmativo. Gesto que ele repetiu.

Voltei para casa com o espírito revigorado. Aquela manhã de Domingo de Páscoa em terras austrais foi compensadora. Decidi que queria viver e me tornar um grande arquiteto. Comecei a levar a faculdade com mais afinco.

Alguns anos se passaram. Já formado aceitei outro convite. Um amigo ia ao shopping-center em Campinas com a caminhonete D-20 de seu pai. Fomos passear um pouco. Já era noite. Na hora de ir embora, um Gol nos fechou na alça de acesso para a rodovia. Dois homens armados desceram do carro. Um ficou no volante.

Um dos assaltantes me tirou da caminhonete e me levou para o acostamento. Era jovem como eu, bem vestido de sobretudo e loiro, de olhos claros. O playboyzinho encostou uma pistola na minha testa. Tive tempo de ver as ranhuras em espiral do cano da arma. Levantei os braços e pensei:

- Então é isso? A vida acaba assim? Será que vou ver meu irmão de novo, daqui a pouco? Certo, elemento. Atire logo!

Ele não atirou. Apenas pegou meu relógio suíço, já com a pulseira cromada e reluzente no meu pulso esquerdo. Lembrei do cassino de Punta Del Este e da fleuma de Sean Connery em seus filmes de James Bond. Era como se ele me ensinasse:

- Easy come, easy go.

Fiquei sem o relógio e meu amigo sem a D-20, mas estamos vivos até hoje. O prefeito Toninho, de Campinas, morreria em condições semelhantes em setembro de 2001, naquele lugar ermo, onde hoje há um monumento em sua homenagem: a escultura dele soltando uma pipa. O que me leva a outro monumento: a mão saindo da areia na praia de Punta Del Este. Ela vaticina que a vida nos escorre pelos dedos, inexoravelmente.

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sexta-feira, 22 de julho de 2016

Papa Francisco no Brasil

O assunto é polêmico e seria mais fácil esquecê-lo. Seria como negar os valores nos quais acredito. Então publicarei aqui o que escrevi no dia 22 de julho de 2013, no Facebook, pois estou trazendo para cá, aos poucos, o que escrevi nas redes sociais nos últimos anos:

Amigos, vocês sabem que não sou católico, mas como cristão protestante respeito o Papa e demais líderes religiosos judeus, muçulmanos, budistas, espiritistas e das demais denominações, dado que o respeito é ensinado na comunidade que frequento.

Existem pessoas que desejam protestar contra a vinda do Papa Francisco ao Rio de Janeiro. Eles planejam um ritual coletivo de "desbatismo", usando secadores de cabelo numa atitude claramente debochada.

Logicamente os ateus também merecem respeito, mesmo aqueles que debocham da fé alheia. Para tais debochadores, respeitosamente faço algumas sugestões:

1) Se esborrachou num acidente de carro? Recuse atendimento emergencial numa Santa Casa, já que muitas cidades do estado laico não possuem sequer um pronto socorro.

2) Algum parente está com câncer? Proíba ele de se tratar num hospital israelita, que são os melhores do mundo.

3) Seu filho passou no vestibular da PUC? Está certo que a PUC não é uma USP ou Unicamp, mas ela forma gente para o mercado de trabalho, mas não faça a matrícula nela: é um antro de católicos.

4) O mesmo se aplica à Ulbra, Unimep e ao Mackenzie, com a diferença de que são universidades nascidas no berço de igrejas protestantes.

5) Sua cidade tem nome de santo? Mude-se dela.

6) Trabalhe no Natal e na Sexta-feira Santa, que são feriados religiosos.

7) Não pule Carnaval e não pule fogueira em Festa Junina, pois são festas do calendário eclesiástico.

8) Não torça mais pelo Corinthians, São Paulo ou Santos, ou peça para os dirigentes mudarem os nomes destes clubes.

9) Mude-se para a Coreia do Norte, único país do mundo que proíbe o indivíduo de externar qualquer tipo de credo religioso. É um país maravilhoso, como todos sabem.

Eu poderia me estender indefinidamente, mas preciso voltar para o trabalho. O Papa, a propósito, não está vindo ao Brasil fazer turismo, mas para exercer seu ofício.

quinta-feira, 21 de julho de 2016

Pensar dentro ou fora da caixa?

O que tem dentro da sua caixa?
O que tem dentro da sua caixa?

Imagine que você está dirigindo um carro de noite, por uma estrada com pedágios. Subitamente o motor apaga e você vai para o acostamento. Como você pagou o pedágio, liga para a concessionária, que lhe envia o socorro. Meia hora depois a caminhonete chega, o funcionário abre o capô do carro, lhe faz perguntas certeiras e constata o que aconteceu. Ele começa a raciocinar sobre o procedimento para fazer o conserto da avaria e conclui que basta um alicate e uma chave de fenda para tanto, que ele trouxe em sua caixa de ferramentas.

Sabe o que o mecânico fez? Ele pensou dentro da caixa, literalmente.

"Minha Nossa - Sua e Vossa - Senhora! Mas eu li num texto do Arnaldo Jabor, compartilhado pelo Luis Fernando Verissimo e replicado no perfil do meu colega de boliche, que devemos justamente pensar fora da caixa!"

Pois é, se o mecânico pensasse fora da caixa, neste caso, talvez ele tentasse consertar seu carro com um pedaço de arame farpado que viu no cercado da beira da pista. Nem o MacGyver faria isso, se estivesse de posse de seu canivete suíço, que vale por uma caixa de ferramentas.

Vamos entender "caixa de ferramentas" como repertório. Antes de compôr os sucessos dos anos de 1960, que se tornaram clássicos do Século XX, os Beatles colocaram em sua caixa de ferramentas dezenas de covers de cantores de rock e blues da década anterior, como Little Richard, Chuck Berry e Carl Perkins. Os Beatles começaram pensando dentro da caixa, para depois pensarem por conta própria.

Nenhum filósofo vai adicionar uma frase na história do pensamento da humanidade se não tiver lido antes todos os grandes autores da área. Um filósofo precisa colocar muitos livros dentro de sua caixa, ou seja, do seu repertório, para ter a chance de pensar por conta própria um dia. Caso contrário, ele corre o risco de pensar que teve uma ideia inédita, que na verdade já foi concebida centenas de anos antes.

Um estudante de Arquitetura que não viaja, não enriquecerá seu repertório formal, que lhe servirá de base crítica para seus primeiros projetos. E assim sucessivamente, em diversos ramos de atuação.

Pensar dentro da caixa não é um pecado, desde que sua caixa tenha algo que preste. Quem preenche a sua caixa de ferramentas - o seu repertório - com músicas chulas, filmes rasos, livros sensacionalistas, programas de televisão popularescos e piadas escatológicas do YouTube, poderá pensar 200 metros fora - e acima - da caixa, que não produzirá algo relevante.

Pensar dentro ou fora da caixa importará menos quando conseguirmos pensar por conta própria, de modo construtivo.

Veja também:

quarta-feira, 20 de julho de 2016

O Ricardo Setti concorda com a gente

Tela capturada do perfil do jornalista Ricardo Setti no Twitter.
Tela capturada do perfil do jornalista Ricardo Setti no Twitter.

O jornalista Ricardo Setti tem mais de meio século de carreira. Já trabalhou nos principais jornais e revistas do Brasil, cobrindo temas políticos e econômicos. Por alguns anos manteve um blog na Veja, com o qual tive o prazer de colaborar com alguns artigos.

Recentemente ele se retirou da grande mídia e se mudou de São Paulo para Barcelona na Espanha, mas ainda mantém um perfil no Twitter, onde publica com grande regularidade.

Por ocasião do recente texto que escrevi sobre os filósofos brasileiros, encaminhei uma mensagem para o Setti, que generosamente nos respondeu publicando o link para seus seguidores. Gentileza no dia do amigo é isso, pela qual sou muito grato.

Segue a reprodução do tweet:
Visite o site oficial do jornalista Ricardo Setti e acompanhe ele pelo Twitter.

terça-feira, 19 de julho de 2016

Tita - a nossa calopsita

Tita, no dia em que a recebemos em casa.
Tita, no dia em que a recebemos em casa.

Mensagem publicada originalmente em 19 de julho de 2012, no Facebook:

"Acordei hoje sem a menor disposição para enfrentar o computador. Parece que depois de 14 anos sem férias isso acontece as vezes. Resolvi fazer uma caminhada logo cedo para arejar. Ser autônomo tem seu lado bom por causa disso também.

Perto do portão vi esta calopsita. Seu olho esquerdo estava saltado para fora. Tentei me aproximar e ela se assustou, voando para longe. O voo foi rasante: ela fez uma curva longa e voltou para minha casa. Mas, cega de um olho, chocou-se contra a chaminé da churrasqueira, indo direto para o chão.

Minha esposa ficou com o coração apertado. Ela pôs água numa tampa de embalagem e levou para a ave, que estava com sede. Depois saiu para comprar ração e ligou para um veterinário. Procuramos na vizinhança mas não encontramos seu dono.

Vamos cuidar do pássaro até ele ficar bom. Depois a gente pensa no que vai fazer.

As vezes a gente fica preocupado com bobeiras, achando que estamos sozinhos para resolver as coisas, sem saber que uma força maior pode estar logo ali para nos ajudar. Mas tem gente - e animais - em situação de real necessidade. E se todo mundo só pensar em si mesmo? Como fica?

Na correria do dia, parei cinco minutos para compartilhar isso com você."

Atualizando, quatro anos depois:

A Tita está conosco até hoje. O veterinário nos passou um remédio e o modo de tratar do olho da calopsita. Colocamos ela numa caixa de papelão e diariamente aplicávamos um spray curativo, levando bicadas. Eu a segurava para a Renata. A bichinha esperneava.

Com o tempo ela foi se acalmando. Nos apegamos a ela. Compramos uma grande gaiola e o olho machucado dela desinchou. Um dia ela começou a cantar para nós, pela primeira vez. Nos sentimos recompensados.

Nosso afilhado, na época com apenas dois anos, não conseguia falar "calopsita", mas apenas "tita". Tita virou o nome dela, que canta de alegria sempre que eu assobio. Ela também canta quando ouve Oasis e Beatles. Ela tem pavor quando alguém chuta uma bola de plástico perto da gaiola.

Será muito difícil se um dia ela nos deixar. Ela toma conta de nossa casa sempre que saímos juntos. A Tita faz parte da nossa família.

domingo, 17 de julho de 2016

Bowie

David Bowie em imagem promocional de 1967 editada por terceiros sem registros de direitos autorais. Texto publicado originalmente no Facebook em 11 de janeiro de 2016.
David Bowie (08/01/1947~10/01/2016).

O mundo precisa de gênios artísticos desajustados, que pensam fora do eixo e que ganham tudo, pois nunca tem nada a perder. Gente que cheira as carreiras que nunca vamos experimentar, que faz amor de várias maneiras que nunca ousaremos tentar.

Sim, o mundo está repleto de seguidores cegos, que apenas copiam as loucuras de seus ídolos sem ter nada para oferecer em troca. O mundo precisa de gente certinha também, pois são as pessoas comportadas que fazem o trabalho subterrâneo de mantê-lo girando.

Precisamos dos gênios desajustados para imaginar como seriam nossas vidas se não ligássemos para as regras. E como esses artistas também se ferram de verdade, diante de todos, nos confortamos em saber que estamos protegidos das eventuais vaias e da piedade sem limites.

Como sei que faço parte do grupo dos comportados, não vou me tatuar, deixar o cabelo crescer, tomar uma garrafa de uísque por dia. Essas coisas não impressionam mais ninguém. Isso deveria ser privilégio dos artistas, especialmente os roqueiros.

Quando alguém como David Bowie morre só tenho duas coisas a fazer: lamentar e agradecer. Lamentar por um mundo que está cada vez mais chato, e agradecer por sua entrega para oferecer uma válvula de escape para aqueles que tentam fazer tudo certo.

sábado, 16 de julho de 2016

No ramo da manutenção predial não existe clima ruim

Casa e escritório do arquiteto na Rua Alemanha 240,  Jardim Europa em Paulínia/SP.
Casa e escritório do arquiteto na Rua Alemanha 240,  Jardim Europa em Paulínia/SP.

Publicado originalmente no Facebook em 16 de janeiro de 2016:

Vou contar um segredo de arquiteto para vocês: as casas não são como esculturas de mármore, que resistem por centenas de anos sem qualquer tipo de manutenção.

As casas, assim como os carros, precisam de uma revisão anual, com a diferença que você não leva a casa numa oficina, mas traz os "mecânicos" até ela. Quando a manutenção preventiva não é feita, os pormenores se acumulam até se transformarem em transtornos.

Mesmo quem é cuidadoso com seu imóvel pode ser surpreendido por um imprevisto. Aconteceu comigo depois da chuvarada que assolou o interior de São Paulo.

Alguns parafusos que fixam as telhas metálicas da minha cobertura se oxidaram com o passar dos anos, gerando um incômodo vazamento justamente sobre a laje do meu escritório.

Neste sábado de manhã pedi socorro para um pedreiro de confiança. Subimos no forro e verificamos o que ocorreu. Para não ter que trocar os parafusos, resolvemos comprar uma resina plástica para besuntar eles, sanando o problema até que o tempo se firme para trocarmos o que for necessário.

Fui até a loja mais próxima do bairro, que estava fechada. Estiquei o caminho até a avenida central e outra loja, bem maior, também estava fechada. O jeito foi ir até a única loja que certamente estaria aberta, mesmo sabendo que lá os preços são um pouco mais altos.

Não deu outra: peguei senha para ser atendido por um dos cinco balconistas. Havia duas funcionárias nos caixas e muitos clientes falando alto, como se estivessem num mercado de peixe.

E a crise? Ela certamente existe para os dois lojistas que estavam fechados, mas passa longe da loja que abriu neste sábado de manhã.

No ramo da manutenção predial não existe clima ruim. Assim como ninguém deixa de consertar o carro que usa para ir trabalhar, ninguém deixa de arrumar a própria casa quando acontece um problema aparente.

sexta-feira, 15 de julho de 2016

A importância do invisível

A importância do invisível (publicado originalmente no Facebook em 15 de julho de 2013).

O bebê, deitado em seu berço protetor, olha para o céu e não vê estrelas e planetas, mas singelos brinquedos coloridos. A criança não percebe que os corpos estão suspensos por discretos barbantes.

Do mesmo modo, quando observamos a imensidão do firmamento durante uma noite de luar, não percebemos a força que mantém os planetas em torno do sol e as estrelas formando constelações.

Alguns, como bebês desavisados, acreditam que tudo isso é por acaso. Os mais crescidinhos, porém, sabem que foi o Pai - ou a Mãe - que pendurou tudo ali, para embalar os nossos sonhos.

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Qual é o problema em ficar na zona de conforto? Nenhum

Qual é o problema de ficar na zona de conforto? Nenhum

Os clichês não estão presentes apenas nos filmes de Hollywood, nas novelas da televisão e na literatura barata - eles inundam também as palestras motivacionais e os artigos do ambiente corporativo. Eis um exemplo de clichê repetido até por quem fez MBA ou doutorado em recursos humanos:

"Se você quer progredir e melhorar de vida, precisa se arriscar e sair da zona de conforto."

A frase vem provocativa, para tirar o receptor da mensagem do estágio catatônico em que se encontra. Mas quem emite a mesma está cometendo um auto-engano, ou não sabe ao certo o que é de fato a tal "zona de conforto", pois se ela é confortável, quem seria ingênuo de querer sair dela?

Estar numa real zona de conforto é não ter que trabalhar por necessidade, mas por opção prazerosa. O empreendedor que está na zona de conforto não faz investimentos no escuro, mas apostando na certeza de ganhar, pois seus riscos são calculados para, em caso negativo, lhe levar apenas a gordura e não um pedaço da carne do bife. Quem está fora da zona de conforto precisa acordar cedo para o batente - os empreendedores nestas condições investem com uma certa ansiedade, por causa da pressão por resultados positivos.

Quem está na zona de conforto se sente confortável em fazer exercícios físicos diários, pois a falta deles é desconfortável. Quem está na zona de conforto se sente confortável em ler um livro depois do outro, pois a ausência de um livro no criado-mudo é que gera o desconforto. Quem está na zona de conforto sente prazer em continuar crescendo. Quem está fora dela apenas corre atrás do osso, ou fica parado, pensando que está numa zona de conforto.

As pessoas estão confundindo "zona de conforto" com "zona de estagnação" - esta é a zona perigosa. Estar numa zona de estagnação significa que o gráfico de uma carreira mostra uma comprida linha reta horizontal. Porém, quem está acostumado a fazer análise de gráficos sabe que quase sempre depois de um longo segmento de estabilidade vem um período de decadência.

Estar numa zona de estagnação é se conformar com um emprego estável, que lhe paga as contas do mês mas não lhe oferece perspectivas de crescimento. O problema é que a idade chega e o custo de vida aumenta. Então, aquele salário corroído pela inflação não será suficiente para alimentar a despensa de casa e o armarinho dos remédios, com cada vez mais remédios.

Por isso, devemos fugir da zona de estagnação e mirar na zona de conforto, buscando a independência financeira que vai patrocinar a liberdade do indivíduo para realizar seus sonhos e os sonhos daqueles que o cerca.

É muito difícil atingir a zona de conforto. E quem chega nela não quer deixá-la jamais.

Veja também:

quarta-feira, 13 de julho de 2016

A gente se move por aquilo que nos falta

O que você percebe nesta imagem? (Publicado originalmente no Facebook em 13 de julho de 2015.)

Observo esta foto e me pergunto o que estaria faltando nela.

Será que falta um carro antigo, vermelho, repleto de cromados? Daria um belo poster, daqueles que são vendidos em lojas de decoração.

Será que falta uma família de retirantes, caminhando juntos com uma cadela vira-latas? Eis a capa de um romance famoso.

Quem sabe estaria faltando George Harrison com seu violão, para compor "Lá vem o sol"?

Você pode dizer que faltam as cores. As cores estavam lá, mas eu as suprimi na edição. Então agora cabem nesta imagem o seu verde favorito, o ocre da terra onde você nasceu e o azul do céu das suas melhores lembranças.

Pensando bem, pode ser muito bom quando falta alguma coisa.
A gente se move por aquilo que nos falta. 

terça-feira, 12 de julho de 2016

O critério subjetivo da revista GQ para eleger os arquitetos mais desejados do Brasil

Mais listas? Ah, não!
Mais listas? Ah, não!

A minha abordagem sobre o tema das listas rendeu uma provocação: recebi um e-mail com o link para a reportagem da GQ com o título "Os 10 arquitetos mais desejados do Brasil". O remetente queria saber minha opinião a respeito.

A primeira associação que me veio em mente após ler o artigo - na verdade mais uma lista - foi de uma revista que circula gratuitamente na pequena cidade onde moro, que de tempos em tempos promove a premiação dos melhores profissionais de diversos ramos no município. Por coincidência eles são também os seus anunciantes. A lista da GQ me lembrou isso: um plubieditorial, ou seja, uma matéria paga por alguma agência de publicidade com o objetivo de divulgar produtos e serviços - no caso, a ação promocional está associada com a marca de relógios de luxo Bulgari Roma.

Na magra introdução da lista, a publicação deixa claro que não usou um critério técnico ou científico de escolha: "Há uma nova geração com notório sucesso e estilos bem demarcados arrebatando a preferência de muita gente. Os 10 arquitetos escolhidos pela GQ..."

Traduzindo: a revista usou como fonte da matéria o universo contido na expressão "muita gente" - algo tão vago como o que preenche a distância entre um elétron e o núcleo de um átomo. Na sequência a clareza é explícita: "Os 10 arquitetos escolhidos pela GQ..." - Então o título da matéria deveria ser outro, pois a GQ não responde pelo Brasil inteiro.

Ainda na introdução, um trecho que me assustou: tais arquitetos "têm o reconhecimento do mercado brasileiro e já podem ser apontados como mestres do amanhã." Agora estou me sentindo um peixe fora da água: tenho mais de 20 anos de atuação na Arquitetura e com todo respeito, nunca ouvi falar de alguns nomes mencionados na lista, e esses desconhecidos serão meus mestres em breve? Acho que não.

Quando a lista propriamente dita começa, você imagina que vão citar critérios importantes para a escolha dos novos bam-bam-bans da Arquitetura, como vencer um concurso do IAB - Instituto de Arquitetos do Brasil, o uso de ecotécnicas de conforto térmico ambiental, a pesquisa em economia de energia elétrica, o aproveitamento de águas pluviais, a obsessão pela acessibilidade plena das construções, as propostas de intervenções urbanas nos centros das metrópoles, o desenvolvimento de projetos de alcance social, ou algo do gênero.

Mas não, a lista oferece um balde de trivialidades, como o fulano que frequenta bares do Leblon, no Rio de Janeiro, ou aquele que era surfista desde garoto mas agora pratica kitesurfe. Projetar para atrizes e escritores de novelas da Rede Globo é apontado como um ápice na profissão. Um dos arquitetos trabalhou, vejam só, para Luciano Huck, como se este fosse uma referência entre os críticos da Arquitetura - e a julgar por seu programa de televisão, que entre uma futilidade e outra reforma casas e carros, o senso estético do apresentador é bem cafona.

OK, alguns  arquitetos estagiaram com gênios do ofício, como Paulo Mendes da Rocha e Isay Weinfeld, mas se o critério adotado pela revista GQ for mesmo válido e reconhecido pela classe, então a Arquitetura Brasileira vive uma crise de identidade sem precedentes, senão vejamos: nenhum arquiteto da lista mantém escritório fora do triângulo Rio-São Paulo-Minas. Como assim? Nenhum arquiteto da Região Sul é relevante? Ninguém do Norte e Nordeste? Nem do Centro-Oeste? Os arquitetos queridinhos da GQ são desejados nestes estados"periféricos" também?

De acordo com o CAU - Conselho de Arquitetura e Urbanismo, 60% dos registros profissionais já pertencem às mulheres. Pois é, nenhuma delas figura na lista da GQ entre as arquitetas mais desejadas do Brasil. Só por tal aspecto, a lista da GQ poderia ser apontada como uma bela patuscada, o que de fato foi.

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Blog do Tosetto no site do Padilha

Tela congelada do site do professor Ênio Padilha.
Tela congelada do site do professor Ênio Padilha.

Ainda na primeira quinzena de seu lançamento, o Blog do Tosetto passou a ser acessado por domínio próprio (sai o "tosetto.blogspot.com" que continua valendo, e entra o "tosetto.com") no mesmo dia que ganhou a primeira menção num site relevante, fora das redes sociais.

O autor da generosidade é Ênio Padilha, com quem tive o prazer de escrever o livro "Arquiteto 1.0 - Um manual para o profissional recém-formado". Seu site, aliás, é endereço obrigatório para engenheiros, arquitetos e estudantes correlatos, independentemente do tempo de carreira.

Coloque em seus favoritos: www.eniopadilha.com.br

A idade do bronze

A medalha de bronze na palma da mão. (Publicado originalmente no Facebook em 11 de julho de 2014.)
A medalha de bronze na palma da mão.

Estudei em escola pública até os treze anos de idade. Nossas aulas de Educação Física eram na quadra de esportes do João Aranha. Bons tempos, aqueles. Pratiquei todos os esportes disponíveis naquela época: vôlei, handebol, basquete e futebol de salão. Nossa professora era a Dona Dirce. Já naquele ano de 1989 ela era uma heroína, com os poucos recursos que o Estado lhe oferecia.

Ela dizia que meu talento era para jogar vôlei, na posição de levantador. Mas meu sonho era ser goleiro. Nosso time era muito bom: tinha o Rogério na ala direita, o Marmelo e o Vanderlei se revezavam na ala esquerda, o Nico alternava com o Donizete na zaga e o Carlinhos era o nosso craque, atacante.

A Dona Dirce nos inscreveu para disputar o campeonato municipal infantil de Paulínia, que ocorreu no mês de junho. O Rogério, por causa de apenas dois meses a mais na data de nascimento, foi vetado naquela categoria. Em seu lugar entrou o Fabinho, que acabou dando nome para o time: Santos.

No dia da estréia bateu o nervosismo: não tínhamos sequer o uniforme. Em cima da hora a loja Center Channel nos arranjou algumas camisas da Hering. O time ganhou novo nome: era o Santos Center Channel. A gente perdeu aquela primeira partida para o time mais forte da chave.

Tínhamos que ganhar as outras três partidas, para pelo menos ficar em segundo lugar no grupo e decidir a medalha de bronze, como acontecia nas Copas de antigamente. Detalhe: os jogos eram logo cedo no ginásio do centro. Íamos à pé disputar as partidas, andando mais de seis quilômetros só de ida.

Fomos vencendo cada jogo, torcendo por um tropeço do líder do certame, o que acabou não acontecendo. Felizmente tivemos a chance de decidir o terceiro lugar.

Nunca tínhamos ganho qualquer medalha, então era um sonho jogar aquela partida, contra o time fortíssimo do bairro Santa Cecília. O Santa Cecília teve a proeza de empatar com o Vídeo T, que simplesmente tinha três jogadores da Ponte Preta no elenco - um deles, o também goleiro Alexandre, jogou até na seleção brasileira de novos, anos depois.

Disseram que nós perderíamos de goleada. O jogo ainda por cima seria realizado de noite, como preliminar de uma partida entre adultos. Pela primeira vez fomos de condução para o ginásio. Todos apertados no Passat Pointer chumbo metálico do meu pai. Seria a primeira vez que ele me veria jogar. Eu não podia fazer feio, de jeito nenhum.

Meu pai sentou na arquibancada ao lado do Seu Pitota, um senhor alto, esbelto e elegante feito um doutor de Sorbonne. Ele era marido da Dona Joyce, a fineza em pessoa. Quem é antigo na cidade de Paulínia sabe de quem estou falando.

A partida começou com um bom público chegando no ginásio. Meu coração estava disparado. Tinha um grandalhão no time adversário. Ele não tinha jogo de cintura, mas soltava dignas bolas de canhão com seu pé esquerdo. A primeira veio na direção do Nico, que tentou um golpe de capoeira, mas apenas desviou a bola para me encobrir. 1 a 0. A porteira estava aberta.

Só que a gente tinha o Carlinhos. Ele sofreu falta logo depois do meio da quadra. O goleiro deles armou a barreira com dois jogadores. O Carlinhos bateu rasteiro. A bola fez a única trajetória possível entre a barreira e o canto da trave. Golaço. Jogo empatado. E assim foi até o fim do segundo tempo.

Jogamos na retranca, atacando só de boa, na certeza. Atuei muito confiante debaixo da trave. Olhava só para a quadra. As arquibancadas do ginásio eram dois borrões na minha visão periférica. Fiz defesas seguras. Até as bolas que iam para a linha de fundo eram agarradas sem distinção.

No começo da prorrogação, nova falta. Mais perto do gol, porém na mesma faixa lateral esquerda da quadra. Nova barreira formada. E o Carlinhos repetiu a cobrança. Parecia repeteco do primeiro gol. Que emoção. Daria a capota do meu MP Lafer para ver aquele jogo de novo. Golaço ao quadrado!

Após a virada, o time do Santa Cecília partiu para o ataque com tudo. A bola sobrou na intermediária para aquele grandalhão, que esqueci o nome. O petardo veio feito um foguete, mas para mim parecia câmera lenta. A bola ia entrar no meu ângulo esquerdo. Voei na direção dela com os braços estendidos ao máximo.

Inacreditavelmente espalmei a pelota na forquilha da trave. Ela foi para escanteio. Caí no chão feito uma tora de madeira serrada. Me levantei com a torcida batendo palmas. Meu time gritou em coro: "Valeu, Jean!"

O juiz apitou o final do jogo e todos foram correndo me abraçar. O frangueiro e estabanado aqui, que saltava nas bolas feito um sapo, teve seu dia de Aranha Negra, o grande arqueiro da União Soviética. Aquela medalha de bronze pesou em nosso peito e nos atrevemos a dar uma volta olímpica.

No dia seguinte a Dona Dirce nos colocou num ônibus coletivo da AVPP e nos pagou uma rodada de sorvete na padaria Disneylandia, com o suado dinheirinho dela, que chegava nas aulas dirigindo um Corcel II. Por onde andará a Dona Dirce?

A cultura ocidental reza que só o primeiro lugar importa. Que o vice-campeão é o primeiro dos perdedores. Que o terceiro lugar não vale nada. Nada? Nada mais inapropriado do que ensinar os mais jovens a acreditarem nisso.

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Seis motivos pelos quais não gosto de listas

Seis motivos pelos quais não gosto de listas

As listas estão na moda, se disseminando em sites e e-books distribuídos gratuitamente, desde que você forneça seu precioso e-mail de contato. Pessoalmente não aprecio listas. Eis as razões:

1) Listas não são textos. São listas.
Escrever um texto é trabalhoso. É preciso elaborar uma introdução para fisgar o leitor, lhe fornecer argumentos substanciosos e coroar sua expectativa com uma conclusão matadora. As listas quebram essa lógica. É como namorar sem as preliminares.

2) Listas são coisas de gente preguiçosa.
Alguém, com muita preguiça para elaborar um artigo, mas querendo agradar quem tem preguiça de ler um textão, coleta tópicos com algum parentesco que lhe garanta um ar de sabedoria. É importante ser reconhecido como autoridade, mesmo sem ser autor de algo relevante.

3) Listas trazem itens redundantes.
Vide os dois primeiros itens dessa lista.

4) Listas promovem rótulos.
O que são listas senão um tipo de classificação? No debate das ideias, classificar é o mesmo que rotular, e com isso se diminui conceitualmente o objeto de uma questão ou o oponente, que tem opiniões diferentes.

5) Sempre tem alguma exceção.
Por exemplo, eu gostei dessa lista que demonstra que não gosto de listas.

6) Listas contém enchimento de linguiça.
Geralmente, quando falta algo para completar o número proposto de uma lista, se pensa em algo engraçadinho para descontrair a pessoa que fez a leitura até o fim.

Se tem uma coisa que me irrita mais do que listas, são textos que terminam com a pergunta "E você?"

- E você? O que achou dessa lista?

Veja também:

quinta-feira, 7 de julho de 2016

Ser filósofo no Brasil é ser popstar

Outdoor anuncia palestra do filósofo Mario Sergio Cortella em Paulínia/SP. Nem Platão tinha esse cartaz todo na Grécia Antiga.
Outdoor anuncia palestra do filósofo Mario Sergio Cortella em Paulínia/SP. Nem Platão tinha esse cartaz todo na Grécia Antiga.

O filósofo Sócrates, que viveu cerca de quatro séculos antes de Cristo, era tão sagaz que colecionou desafetos em Atenas. Estes lhe arranjaram um julgamento político que resultou na sua condenação à morte por envenenamento. Ele teve que beber cicuta por se recusar a levar uma vida contrária às suas convicções.

Seu contemporâneo, Diógenes de Sínope, foi exilado de sua cidade natal e perambulou também em Atenas, mendigando com uma lamparina na mão em busca de um homem honesto. Ele se abrigava num barril e elogiava as virtudes dos cães, o que lhe rendeu a alcunha de "O Cínico" - um termo oriundo da palavra grega "kynikos" - "canino" numa tradução livre.

Um milênio depois o francês René Descartes, simplesmente o precursor do pensamento cartesiano e considerado o pai tanto da matemática quanto da filosofia moderna, não escapou de ter seus livros colocados na lista de proibições da Igreja Católica, em função de conceituar e existência de Deus através de referências geométricas abstratas.

Na segunda metade do Século XIX, o alemão de origem polonesa Nietzsche era um jovem professor de filologia da Universidade da Basileia, emprego que abandonou por causa de problemas de saúde, com os quais teve que conviver para escrever suas principais obras, intercalando momentos de lucidez com acessos de loucura.

Esta breve pincelada pela história de grandes pensadores da humanidade nos faz constatar que ser filósofo não é uma garantia de vida mansa, glamourosa e sofisticada. Pelo contrário, a maioria dos grandes filósofos teve um padrão de vida pouco desejado - ou invejado - pelas camadas mais populares das sociedades de cada época.

Para desmentir tal associação, surgiram os filósofos da atualidade, num país marcado por contradições como o Brasil. Eles se vestem bem, com ternos bem cortados, moram em bairros nobres de grandes cidades, não recusam entrevistas em canais de televisão - se houver tempo para tanto - e arrastam multidões cada vez maiores para as palestras que proferem. Em geral são, ou foram, professores universitários.

Eles parecem pairar acima das críticas, das quais aparentemente são imunes ou sabem se defender muito bem, dentre os quais destacam-se Mario Sergio Cortella, Luiz Felipe Pondé, Leandro Karnal e Clóvis de Barros Filho. Com exceção de Pondé, assumidamente um liberal em política, os demais se esforçam para manter uma postura neutra, embora os indícios são claros de que eles se entusiasmam mais pelo pensamento esquerdista - dado que declarar isso publicamente está ficando fora de moda.

Não se pode negar que são figuras carismáticas e que são ótimos observadores da atual realidade - suas constatações são provocativas e cativam uma nova geração de pessoas ávidas pelo conhecimento em camadas menos superficiais. O que não significa que eles tem algo novo a dizer: nenhum deles foi capaz, até agora, de apresentar um conceito filosófico inédito, e isso não é um demérito. No mundo da pós-modernidade, onde fica a impressão de que tudo já foi dito antes, nos parece impossível que surja uma ideia realmente nova.

Fast-food? Não. Eles vendem fast-books

Dos filósofos se espera que vivam rotinas quase reclusas, levando três, quatro ou cinco anos para escrever livros densos, parecidos com tijolos. Mas os filósofos brasileiros da atualidade fazem diferente: eles se juntam em duplas alternadas para lançar livros a cada seis meses, tão finos quanto antigos gibis quinzenais do Pato Donald.

E o fazem com o mérito de oferecer uma linguagem acessível e saborosa, traduzindo os complicados conceitos filosóficos que aprenderam durante décadas de leituras dos grandes autores. Este é provavelmente o lado mais positivo de suas breves obras: elas apresentam os leitores às questões mais relevantes, despertando em parte deles a vontade de ler cada vez mais a respeito.

Mas, embora os brasileiros citados aqui possam ser considerados "best sellers", certamente eles possuem muito mais ouvintes do que leitores. Os jovens, hoje em dia, querem aprender mais coisas pelo YouTube do que pelos livros. Existe a falsa impressão de que se pode aprender sobre filosofia assistindo entrevistas na TV Cultura ou em programas de rádio, pelo encanto da manipulação das palavras e a capacidade de articular argumentos que tais filósofos dominam. Ledo engano: filosofia se aprende lendo, estudando, escrevendo e debatendo com outros mestres e estudantes.

De qualquer modo, enquanto a vaidade não lhes subir pelas têmporas, que os filósofos "popstars" continuem influenciando um grupo crescente de pessoas, das quais se aguarda que emerja uma segunda geração de pensadores. Que os mesmos sejam um pouco mais assertivos, um pouco menos famosos - e um tanto mais profundos.

terça-feira, 5 de julho de 2016

Ódio ao sódio

Punho cerrado após aferição de pressão arterial.
Punho cerrado após aferição de pressão arterial.

Aviso aos navegantes: esta crônica não tem caráter técnico e científico. Quando o assunto é saúde, consulte os profissionais da área.

O palmeirense discute com o corintiano para saber qual time de futebol venceu mais campeonatos brasileiros. Enquanto isso, o sódio se embrenha nos sanduíches de mortadela devorados pelos turistas que visitam o Mercadão de São Paulo.

Coxinhas e petralhas se acusam mutuamente de terem provocado a crise econômica que tomou conta do Brasil, motivados ora por razões eleitorais, ora por planos mirabolantes para a manutenção do poder. Enquanto isso, o sódio se mistura com o doce sabor das bolachas de chocolate, consumidas pelos filhos de ambos.

Judeus e muçulmanos discutem o reconhecimento da Palestina numa contenda com origem centenária. Enquanto isso, o sódio - presente no sal da terra - é adicionado aos refrigerantes que matam a sede de quem atravessa o deserto.

Muitos cristãos não se conformam com os ateus, e parte deles trata os cristãos como ignorantes. Enquanto isso, o sódio faz a festa no pacote do macarrão instantâneo, que todos comem quando estão com preguiça de cozinhar ou jantar fora.

Por isso, o grande embate do século não será entre progressistas e conservadores ou entre democratas e republicanos. O grande embate do século se dará dentro do seu organismo, entre o sódio e o potássio.

O sódio é muito usado pela indústria alimentícia (e de junk food) como conservante. O problema do excesso do sódio na dieta, é que ele ajuda a reter líquidos no organismo, elevando a pressão arterial. E quando a pressão arterial permanece alta, o indivíduo - cada vez mais precocemente - torna-se hipertenso, correndo o risco de ter problemas cardíacos e renais em função disso.

Como a hipertensão é silenciosa em vários casos, muitos jovens que não verificam sua pressão arterial estão correndo o risco de ter suas vidas abreviadas em dez, quinze, vinte anos. Quem se descobre hipertenso e não consegue controlar esta condição com reeducação alimentar e exercícios físicos, fica dependente de remédios para sempre.

Os remédios para controlar a pressão são baratos demais, pois são subsidiados pelo governo. Por isso a população não se revolta contra o excesso de sódio nos produtos alimentares. É mais fácil odiar o irmão, não é mesmo?

Paz, amor & potássio

O mundo não precisa de mais violência, intolerância, ódio e sódio. O mundo precisa de mais paz, amor e potássio. O potássio quase não deu as caras nesta história, mas ao contrário do sódio, ele possui propriedades diuréticas, que ajudam a baixar a pressão sanguínea.

O problema do potássio é que ele não é exatamente um queridinho da indústria alimentícia. Ele está presente em alimentos sem verbas publicitárias, como feijão preto, banana, salmão, abacate, espinafre, batata e molho de tomate caseiro. Pelo menos é o que andei lendo na minha busca por informações sobre o assunto.

Assim como a democracia precisa dos azuis e dos vermelhos, nosso corpo necessita de sódio e potássio, mas nunca em doses cavalares. Não estamos pregando o fim do inimigo ideológico e do sódio, apenas o equilíbrio num ambiente saudável de coexistência.

O lance do "ódio ao sódio" no título foi apenas um chamariz baseado na sonoridade das palavras, para que você prestasse atenção ao tema. Vá medir sua pressão. Se ela estiver alta (acima de 13,5 por 8,5) procure um cardiologista. Isso pode a diferença na sua qualidade de vida.

segunda-feira, 4 de julho de 2016

O Reino Unido está saindo do Facebook. Considere fazer o mesmo

Brexit: O Reino Unido está saindo do Facebook. Você também deveria

O ano de 2016 será histórico para o continente europeu. Num plebiscito severamente disputado, os eleitores do Reino Unido votaram pela saída do Facebook (leia-se União Europeia) para ter o próprio blog de novo, com suas próprias leis e suas próprias cores ao invés do azul claro pasteurizado que identifica o perfil de italianos, franceses, alemães, gregos e troianos.

Muitos europeus questionaram: "Como assim, você está saindo do Facebook? Muita gente ansiou para entrar aqui!"

É verdade, no começo do Facebook (União Europeia) ter um convite (um passaporte) para participar da rede social favorecia a livre circulação por todo o ambiente (continente). Porém, a maior parte dos britânicos percebeu que isso não é tão cool assim.

Você produz conteúdo (seja um texto, um vídeo, um carro de Fórmula 1 ou um documentário da BBC) e o Facebook relaciona ele com links patrocinados, sem te consultar. São aqueles burocratas belgas, intervindo na sua economia. Na sexta-feira, antes de postar qualquer coisa, o Facebook te recomenda saudar a chegada do fim de semana, pouco se importando se algum britânico (e talvez você mesmo) gosta de trabalhar no fim de semana.

Muita gente no próprio Reino Unido reclamou da saída do Facebook. Afinal de contas, manter um blog aparentemente dá mais trabalho: é preciso aliviar o arquivo da imagens para elas carregarem mais rápido nas telas dos navegadores, quando o Facebook faz isso automaticamente. A formatação do texto fica por sua conta e parece mais complicado para receber um comentário. Fora que postar por celular é pouco prático.

Mas agora a decisão está tomada. Quem quiser visitar o blog do Reino Unido terá que deixar o ambiente do Facebook. Isso tem seu lado positivo: veremos que há vida inteligente fora da União Europeia e outros países já estão se coçando para voltar a ter seu blog, também. Num blog, cada pais escolhe se quer ter propaganda na barra lateral ou não. E se tiver propaganda, o dono do blog ganha também.

Quem edita o próprio blog possui acesso completo às estatísticas dos visitantes e pode moderar comentários antes deles serem publicados. Tudo o que o Facebook não nos deixa fazer. Para aumentarmos o número de leitores, temos que pagar. Onde está a livre circulação e o livre comércio nisso?

O mundo sem fronteiras, unificado em torno de um império, é uma utopia assustadora sonhada por megalomaníacos como Napoleão e Hitler - e os britânicos, como sempre, resistiram bravamente. Orkut e MySpace já tentaram isso na Internet antes. O que o Facebook e a União Europeia fazem agora, é travestir isso numa linguagem pacífica e amigável, sem o rosto de um tirano em cada moeda. Isso não quer dizer que seja saudável a longo prazo.

Então: já considerou a possibilidade de se alistar no exército da resistência?

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Sobre filmes, livros e caminhos

Caminho em bosque próximo ao Paço Municipal de Serra Negra.
Caminho em bosque próximo ao Paço Municipal de Serra Negra.

Você já zapeou tarde da noite na televisão, até encontrar algum filme sendo exibido? Teve vontade de ver ele até o fim, mesmo desconfiando de sua qualidade? Isso acontece comigo, algumas vezes, com um agravante: o filme pode ser  uma bomba e mesmo assim uma curiosidade quase obsessiva me prende ao sofá, a ponto de adivinhar o que acontecerá na sequência e me penitenciar ao final da história.

Felizmente, com os livros, consigo me controlar. Quando pego um livro para ler, posso desistir dele ainda nas primeiras páginas se ele for ruim, previsível, linear, sem curvas. É como caminhar por uma cidade com ruas formando uma malha absolutamente retangular. Você põe o pé na primeira quadra e já enxerga o final da avenida - nada pode ser tão monótono, como já pregava o arquiteto e urbanista Camillo Sitte em seu livro “A Construção das Cidades Segundo seus Princípios Artísticos” - que por sinal li num fôlego só.

Quando estou em viagem de carro, pedalando uma bicicleta, ou mesmo caminhando por aí, e vejo um caminho diferente, escondido atrás de uma curva, logo sou capturado pela necessidade de saber o que vem depois. Nem sempre posso percorrê-lo naquele momento, então aquele caminho fica na minha cabeça, e a ideia de explorá-lo me faz tecer planejamentos para voltar lá com mais calma.

Bons caminhos são como livros que lemos duas vezes e filmes que nos dão vontade de ver novamente, de vez em quando. Você já sabe onde o caminho te leva, mas você tem percepções novas a cada experiência. Pena que a vida é curta demais para ver todos os filmes, ler todos os livros e percorrer todos os caminhos.

Selecionar é a solução. E aprender a ignorar um filme péssimo também.

sábado, 2 de julho de 2016

Tia Nena

Paisagem rural imaginada pela Tia Nena. (Publicado originalmente no Facebook em 26 de abril de 2016.)
Paisagem rural imaginada pela Tia Nena.

Depois de alguns anos sem ir para São Sebastião do Paraíso, em Minas Gerais - onde fiz a revisão do meu primeiro livro tomando café na sala de piano do Hotel Cosini - levei a Carol para conhecer alguns parentes por parte da mãe, a Renata.

Almoçamos na casa da Tia Aparecida Dizaró e me apaixonei por esta pintura sem título, executada em técnica espatular por uma artista que, se vivesse num grande centro, teria espaço em qualquer galeria de arte.

Fico imaginando quantos artistas permanecem anônimos em suas cidades natais, fazendo a felicidade para seus próximos de verdade, e não através de redes virtuais.

Por alguns instantes me transportei para esta paisagem rural, perto de um conjunto de casinhas que eu gostaria de ter projetado. Esse quadro me lembrou que a vida passa rápido e que devemos priorizar a busca pelo belo nas boas músicas, nos bons livros, nas boas companhias e nas artes em geral. Sem virtuosismos, embora apreciar o que é bom não é pecado, é uma virtude.

Tia Nena, obrigado pela acolhida. Parabéns pelo seu lindo trabalho.

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sexta-feira, 1 de julho de 2016

A cobra cega

A primeira casa onde morei também ficava numa esquina. Era de frente para uma creche que existe até hoje. O asfalto acabava ali mesmo. A duas quadras ficava um campinho de futebol rapado, que hoje é uma praça bem arborizada no Jardim dos Calegaris.

Eu tinha uns cinco anos de idade e de vez em quando ia para lá com meu irmão, de quase oito. Hoje seriam uns cinco minutos de caminhada, mas na época era uma epopeia. Eu era péssimo de bola. Não conseguia correr por causa da bronquite. Mas a garotada também soltava pipas e caçava passarinhos com estilingues de madeira. Era péssimo nisso também.

Um dia acharam uma cobra cega. A mataram e a colocaram num pote de vidro, que devia ser de picles, se não me engano. Lembro de ter sentido medo de ver aquela cobra. Diziam na época que também acharam por ali uma cobra com duas cabeças.

A fofoca correu rápido no bairro e nossa mãe veio nos chamar para ir embora. Como era difícil tirar a gente dali, o estímulo era que nosso pai tinha voltado mais cedo do trabalho e ia levar a gente para comer alguma coisa. E nós é que íamos escolher: pizza ou hambúrguer.

Nós escolhemos pizza, pois não havia pizzaria em Paulínia e teríamos que ir em Campinas, para passear perto do Castelo. Mas acho que nosso pai ficou com preguiça, ou estava cansado demais. Ele nos levou para comer hambúrguer no "Gatus" em Paulínia mesmo - onde hoje fica um hotel perto da Igreja Matriz, que ainda estava em construção.

Lembro do banho demorado naquele dia. Estávamos encardidos. O suor escorreu sobre o pó em nossas barrigas descobertas. Brincávamos só de shorts, descalços. Tínhamos pés bem cascudos.

Não sei o motivo de estar lembrando disso tudo hoje. Acho que é pelo fato de ter dado uma pequena bronca na minha filhinha, que não queria largar meu smartphone, por causa do jogo do gatinho que precisa comer toda hora e repete o que a gente fala.

Lamento por ela, que nunca saberá o que é comer um hambúrguer na varanda do "Gatus". Cada geração ficará com seu tipo de gato para lembrar...

Publicado originalmente no Facebook em 25 de janeiro de 2016.

POW!

Publicado originalmente no Facebook em 12 de fevereiro de 2016.

Estudei em escola pública até a antiga sétima série. Fiz a primeira série, e parte da segunda, na escola Mascarenhas em Paulínia, que fica perto do rio Atibaia. É irônico constatar, só agora, que a sala da primeira série era a última do prédio, lá no fundão, sobre um barranco.

Entre dois blocos de salas havia um corredor a céu aberto que descia para um porão, onde funcionava uma cantina improvisada. A merenda era de graça e, mesmo assim, havia fila de crianças para comprar doces na hora do recreio.

Eu apreciava a sopa de macarrão com caldo de feijão, a polenta, o arroz temperado e o cachorro quente. Mas Cacilda, eu queria me sentir gente também, comprando um doce na cantina. Um dia pedi uns trocados para minha mãe.

O sinal tocou e fui correndo para a cantina. Porém, a fila já estava grande demais e andava muito devagar. Minha ansiedade foi aumentando enquanto via outras crianças brincando após terem saciado a fome. Quando chegou a minha vez de ser atendido fiquei indeciso, até que escolhi um pacote de pipocas doces.

Você já abriu um pacote de pipocas doces?

Eu não sabia como abrir aquilo. Tinha apenas sete anos. O plástico rosa era resistente demais. Peguei em duas abas salientes e creio que fiz força demais, pois o pacote não abriu: ele estourou. POW!

As pipocas foram voando, em câmera lenta, para o alto. Enquanto isso, pescoços se viravam para que os olhos de seus pequenos donos pudessem ver o que tinha acontecido.

Quando as primeiras pipocas atingiram o cimentado áspero daquele corredor, feito cartuchos de balas deflagradas, os primeiros dedos indicadores foram apontados na minha direção.

Preparar, apontar, fogo!

Quando me ajoelhei para pegar algumas pipocas que caíram por perto, as gargalhadas começaram a ecoar dentro da minha mente, feito rajadas de metralhadoras num filme de Sergio Leone.

O sinal tocou de novo. Tínhamos que voltar para a sala de aula. Eu havia perdido meu recreio tentando comprar um pacote de pipocas doces que estourou em minhas mãos. Lembro de ter saboreado dois ou três grãos. Na verdade não teve gosto de nada, pois estava tentando engolir a minha vergonha.

Se fiquei traumatizado? Claro que não. Adoro pipocas doces, mas detesto filas. Quando vou ao shopping com a família, vejo filas de pessoas para comprar sorvete no quiosque do Méqui Donalson. Não consigo entender aquilo - prefiro a sorveteria do lado, quase sempre vazia.

Queria poder extrair uma lição prática de tal episódio na época, mas somente muitos anos depois pude compreender que, se a gente se planejar, consegue evitar o desperdício de tempo, estudando alternativas viáveis.

Minha mãe já sabia disso, embora nunca tenha me dito nada. No dia seguinte do estouro do pacote da pipoca, ela me fez um misto quente com pão prensado em formas piramidais, e embrulhou na minha mochila.

Quando saquei aquela iguaria na hora do lanche, a criançada que riu de mim no dia anterior me rodeou, pedindo para experimentar um pedacinho daquele sanduíche, que acabou rapidinho.

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