quinta-feira, 7 de julho de 2016

Ser filósofo no Brasil é ser popstar

Outdoor anuncia palestra do filósofo Mario Sergio Cortella em Paulínia/SP. Nem Platão tinha esse cartaz todo na Grécia Antiga.
Outdoor anuncia palestra do filósofo Mario Sergio Cortella em Paulínia/SP. Nem Platão tinha esse cartaz todo na Grécia Antiga.

O filósofo Sócrates, que viveu cerca de quatro séculos antes de Cristo, era tão sagaz que colecionou desafetos em Atenas. Estes lhe arranjaram um julgamento político que resultou na sua condenação à morte por envenenamento. Ele teve que beber cicuta por se recusar a levar uma vida contrária às suas convicções.

Seu contemporâneo, Diógenes de Sínope, foi exilado de sua cidade natal e perambulou também em Atenas, mendigando com uma lamparina na mão em busca de um homem honesto. Ele se abrigava num barril e elogiava as virtudes dos cães, o que lhe rendeu a alcunha de "O Cínico" - um termo oriundo da palavra grega "kynikos" - "canino" numa tradução livre.

Um milênio depois o francês René Descartes, simplesmente o precursor do pensamento cartesiano e considerado o pai tanto da matemática quanto da filosofia moderna, não escapou de ter seus livros colocados na lista de proibições da Igreja Católica, em função de conceituar e existência de Deus através de referências geométricas abstratas.

Na segunda metade do Século XIX, o alemão de origem polonesa Nietzsche era um jovem professor de filologia da Universidade da Basileia, emprego que abandonou por causa de problemas de saúde, com os quais teve que conviver para escrever suas principais obras, intercalando momentos de lucidez com acessos de loucura.

Esta breve pincelada pela história de grandes pensadores da humanidade nos faz constatar que ser filósofo não é uma garantia de vida mansa, glamourosa e sofisticada. Pelo contrário, a maioria dos grandes filósofos teve um padrão de vida pouco desejado - ou invejado - pelas camadas mais populares das sociedades de cada época.

Para desmentir tal associação, surgiram os filósofos da atualidade, num país marcado por contradições como o Brasil. Eles se vestem bem, com ternos bem cortados, moram em bairros nobres de grandes cidades, não recusam entrevistas em canais de televisão - se houver tempo para tanto - e arrastam multidões cada vez maiores para as palestras que proferem. Em geral são, ou foram, professores universitários.

Eles parecem pairar acima das críticas, das quais aparentemente são imunes ou sabem se defender muito bem, dentre os quais destacam-se Mario Sergio Cortella, Luiz Felipe Pondé, Leandro Karnal e Clóvis de Barros Filho. Com exceção de Pondé, assumidamente um liberal em política, os demais se esforçam para manter uma postura neutra, embora os indícios são claros de que eles se entusiasmam mais pelo pensamento esquerdista - dado que declarar isso publicamente está ficando fora de moda.

Não se pode negar que são figuras carismáticas e que são ótimos observadores da atual realidade - suas constatações são provocativas e cativam uma nova geração de pessoas ávidas pelo conhecimento em camadas menos superficiais. O que não significa que eles tem algo novo a dizer: nenhum deles foi capaz, até agora, de apresentar um conceito filosófico inédito, e isso não é um demérito. No mundo da pós-modernidade, onde fica a impressão de que tudo já foi dito antes, nos parece impossível que surja uma ideia realmente nova.

Fast-food? Não. Eles vendem fast-books

Dos filósofos se espera que vivam rotinas quase reclusas, levando três, quatro ou cinco anos para escrever livros densos, parecidos com tijolos. Mas os filósofos brasileiros da atualidade fazem diferente: eles se juntam em duplas alternadas para lançar livros a cada seis meses, tão finos quanto antigos gibis quinzenais do Pato Donald.

E o fazem com o mérito de oferecer uma linguagem acessível e saborosa, traduzindo os complicados conceitos filosóficos que aprenderam durante décadas de leituras dos grandes autores. Este é provavelmente o lado mais positivo de suas breves obras: elas apresentam os leitores às questões mais relevantes, despertando em parte deles a vontade de ler cada vez mais a respeito.

Mas, embora os brasileiros citados aqui possam ser considerados "best sellers", certamente eles possuem muito mais ouvintes do que leitores. Os jovens, hoje em dia, querem aprender mais coisas pelo YouTube do que pelos livros. Existe a falsa impressão de que se pode aprender sobre filosofia assistindo entrevistas na TV Cultura ou em programas de rádio, pelo encanto da manipulação das palavras e a capacidade de articular argumentos que tais filósofos dominam. Ledo engano: filosofia se aprende lendo, estudando, escrevendo e debatendo com outros mestres e estudantes.

De qualquer modo, enquanto a vaidade não lhes subir pelas têmporas, que os filósofos "popstars" continuem influenciando um grupo crescente de pessoas, das quais se aguarda que emerja uma segunda geração de pensadores. Que os mesmos sejam um pouco mais assertivos, um pouco menos famosos - e um tanto mais profundos.

6 comentários:

  1. Caro amigo Jean!
    Pelo visto você está em sua mais rica fase de observação e provocação da realidade.

    As vezes penso que você está provido de poderes especiais ou de uma grande visão de raio x. Kkkkk

    Brincadeira a parte, seu texto nos provoca a refletir sobre as reais conexões de mundo moderno e ser humano. Não é fácil falar ou escrever sobre isso, mas tem se tornado necessário, diante de tanta alienação ou pasteurização da cultura e filosofia.

    Apesar de achar justa e legítima as atuações dos filósofos citados, concordo com sua provocação. Aliás, cada dia que passa é necessário haver mais provocação do que ostentação.

    Parabéns e até o próximo texto!😉

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    1. Obrigado, caro Rogerio!
      Quando tenho ideias martelando na cabeça só tem um jeito: escrever. Criei esse blog para dar vazão a uns pensamentos represados, que não se encaixavam no site de Arquitetura. Abraços!

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  2. Como bem observou, acima, o Rogério Novaes, você está em grande forma. Este texto é daqueles que "tira o leitor pra dançar". Vai conduzindo com boas argumentações até o ponto desejado. Um artigo "nota dez", com certeza não só pela clareza do texto mas também, e principalmente, pela relevância do tema e pela inteligência da conclusão. Vou recomendar a leitura aos meus amigos.

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    1. Prezado Ênio,
      A maior parte do meu tempo é dedicada ao ofício e à família, mas tenho me disciplinado para escrever sobre temas diversos. Não quero parar no segundo livro e ainda estou em busca do tema para o terceiro. Quem sabe este blog possa me ajudar.
      Grato pela recomendação!

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  3. Meu garoto!...
    rsrs...

    Anibal
    (o paipai do Jean... rsrs...)

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