quarta-feira, 10 de maio de 2023

Rita Lee é dona de uma das minhas primeiras lembranças


Eu devia ter uns três anos de idade. Estava no banco de trás do Fusca branco dos meus pais. Meu pai estava ao volante. Minha mãe ao lado, segurava uma câmera de filme Super 8. Meu irmão mais velho estava ao meu lado esquerdo, sem cinto de segurança, com apenas seis ou sete anos. Minha irmã caçula do outro lado. Eu era o filho do meio, então sentava no meio do banco traseiro.1979? Acredito que sim.

O rádio embutido no painel de metal era preto, com dois grandes botões e umas teclas sob o dial. A gente estava chegando em Campinas, passando pela fábrica de biscoitos da Triunfo. Quando ouço a palavra "Campinas", me vem a imagem desse radinho, que estava tocando uma música estranha, que eu não entendia nada.

Anos depois descobri que se tratava de "Mania de Você", de Rita Lee. A música tocava várias vezes ao dia. No consultório da dentista, uma morena alta e magra, havia uma caixa de madeira com dominós, na sala de espera. Eu brincava com eles como se fossem carrinhos num estacionamento. No som ambiente as palavras e a melodia de Rita Lee eram gravadas em minha cuca, no alto de um prédio da Avenida Francisco Glicério, perto da Catedral de Campinas.

A dentista era bonita e muito simpática. Foi atenciosa comigo. Mais do que isso: carinhosa. Lembro do bocão aberto, de olhar para o teto e para o nada, ao mesmo tempo. "Nada melhor do que não fazer nada..." - Rita Lee entrou na minha cabeça desde cedo, pela minha boca e pelos meus ouvidos. Ela tinha a idade do meu pai. Apenas três dias de diferença.

Meu pai, porém, levou uma vida completamente diferente. Enquanto Rita Lee e os Mutantes passeavam de Buggy, meu pai servia o exército. Enquanto Rita Lee se separava dos Mutantes, meu pai se casava com minha mãe. Enquanto Rita Lee fazia sucesso com a banda Tutti Frutti, meu pai trabalhava no turno da noite, numa fábrica. Minha mãe fazia tudo em casa.

Um dia, já na faculdade, comprei um disco dos Mutantes. Mostrei para o meu pai, que disse: "Esses playboyzinhos copiavam os Beatles". Sim, mas eram tão bom quanto eles.

Como sempre, nunca estamos preparados para um partida. Nunca cheguei perto da Rita Lee, mas seu passamento reavivou lembranças que estavam sendo apagadas em minha mente. O que me assusta, porém, é que a geração dos meus pais começou a ir embora. Para sempre. E nós, que ficaremos por aqui por mais algum tempo, o que vamos fazer? Vamos desafiar as convenções da sociedade? Vamos aguentar o tranco de trabalhar duro para pagar as contas e criar nossos filhos?

Sinto que a geração anterior foi muito mais adulta, rebelde, resistente e intensa do que a nossa. Isso me angustia.

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sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Van Gogh descrito pelo ChatGPT (e onde Pinóquio entra nesta história)

"Doze Girassóis numa Jarra" (1888), pintura de Vincent van Gogh (1853-1890) pertencente ao acervo da coleção Neue Pinakothek , em Munique, na Alemanha.
"Doze Girassóis numa Jarra" (1888), pintura de Vincent van Gogh (1853-1890) pertencente ao acervo da coleção Neue Pinakothek , em Munique, na Alemanha.

Todos estão falando do ChatGPT e de sua capacidade de gerar conteúdo via inteligência artificial. Minha curiosidade venceu a minha pretensa resistência ao uso de tecnologia para fazer o trabalho intelectual de um ser humano. Dei o braço a torcer. A seguir, reprodução minha primeira interação com o ChatGPT.

(Antes, abro parêntese para confessar que GPT me lembra Gepeto, o marceneiro da fábula que criou Pinóquio, um boneco de madeira que era capaz de falar e queria ser uma pessoa de verdade, e que se notabilizou por contar mentiras que faziam seu nariz crescer. Seria Pinóquio um protótipo da inteligência artificial? Não deixa de ser assustador o fato de que essa ferramenta revolucionária pode ser usada para contar mentiras, mas nós não veremos nenhum nariz crescendo em função delas. Por isso, tome cuidado. Fecha-se o parêntese.)

Segue a minha solicitação:

Desenvolva uma crônica sobre Van Gogh e seu controverso falecimento.

Segue a resposta do ChatGPT:

"Vincent van Gogh era um artista apaixonado e intenso, conhecido por suas vibrantes pinturas que capturavam a essência do mundo ao seu redor. Sua vida, no entanto, foi marcada por turbulências e tragédias, e sua morte ainda é um mistério que fascina o mundo da arte até hoje.

Van Gogh nasceu em 1853 na Holanda, e desde cedo mostrou talento para a pintura. Ele passou anos viajando pela Europa, absorvendo influências e experimentando diferentes estilos, antes de se estabelecer na pequena cidade de Arles, no sul da França, em 1888. Lá, ele encontrou inspiração nas cores vibrantes da paisagem, e produziu algumas de suas obras mais icônicas, como "Noite Estrelada" e "Girassóis".

No entanto, sua estadia em Arles foi tumultuada. Van Gogh sofria de doenças mentais que o deixavam instável e inquieto, e seu relacionamento com outros artistas da região muitas vezes era tenso. Em dezembro de 1888, ele teve um colapso nervoso e cortou parte de sua orelha esquerda.

Após esse incidente, Van Gogh foi internado em um hospital psiquiátrico em Saint-Paul-de-Mausole, onde passou um ano em tratamento. Durante esse período, ele continuou a pintar, produzindo algumas de suas obras mais emocionantes e intensas. No entanto, sua saúde mental nunca se recuperou completamente, e em julho de 1890, aos 37 anos, ele morreu de um tiro no peito.

A causa exata de sua morte ainda é objeto de debate e especulação. Alguns acreditam que Van Gogh se suicidou devido a seus problemas de saúde mental e ao fracasso comercial de suas pinturas. Outros argumentam que ele foi morto por outra pessoa, possivelmente um adolescente local que o havia provocado anteriormente. A teoria de homicídio ganhou força em 2011, quando dois autores publicaram um livro argumentando que Van Gogh foi baleado por um colega artista chamado Paul Gauguin, que supostamente mentiu para encobrir sua culpa.

Independentemente da causa, a morte de Van Gogh deixou um legado duradouro. Suas pinturas são agora consideradas algumas das mais importantes da história da arte, e suas cores vibrantes e pinceladas expressivas inspiraram inúmeros artistas ao longo dos anos. Sua vida, marcada por sofrimento e luta, é um lembrete de que mesmo aqueles que parecem destinados ao fracasso podem deixar uma marca duradoura no mundo."

Segue o meu parecer:

Estou impressionado. Meus dias como cronista estão contados. Nada do que eu possa escrever de hoje em diante será inquestionável, no sentido de que tenha sido realmente escrito por mim. Sempre poderão desconfiar que fiz uso de inteligência artificial. Será um desafio demonstrar o contrário. Tentarei fazer isso recomendo ao meu passado e às minhas andanças por aí, para recolher coisas que ainda não estão na Internet, para se converterem em matéria prima para esses programas que automatizam a produção de conteúdo.

Em complemento ao que o ChatGPT respondeu, recomendo que assistam ao filme sobre Van Gogh, produzido com técnicas que simulam suas pinturas impressionistas. Um belo exemplo do casamento da tecnologia com a sensibilidade artística dos seres humanos.


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sábado, 17 de dezembro de 2022

Uma reflexão sobre o ofício da Arquitetura na pós-modernidade

Visitar obras: a parte nada romântica, mas fundamental, na rotina de um arquiteto.
Visitar obras: a parte nada romântica, mas fundamental, na rotina de um arquiteto.

15 de Dezembro: Dia do Arquiteto. 

Sinceramente estou em dúvida se é um dia para comemorar ou lamentar. Poucos profissionais trabalham mais (e se estressam mais) do que os arquitetos, a despeito do público em geral imaginar o contrário, envernizando um ofício que outrora já foi respeitado - e não é mais.

Numa obra, o pedreiro não tem registro em conselho profissional. O eletricista também não, nem o servente, nem o ferreiro, nem o gesseiro, nem o carpinteiro, nem o marceneiro. Então, se acontecer algo errado na construção, quem responde? Aquele que tem registro em conselho: arquiteto ou engenheiro.

A responsabilidade de quem projeta e acompanha obras é enorme, o que faz de arquitetos e engenheiros profissionais baratos perto do tanto que eles podem perder se algo de ruim acontecer num canteiro de obras. Acontece que nem os profissionais do ramo sabem disso e os conselhos pouco orientam sobre o assunto.

Na outra ponta, quem precisa pagar pelo serviço de um arquiteto, muitas vezes pensa que ele é apenas um despachante de planta, quando não um atravessador imposto por uma norma burocrática. Poucos tem a noção de que um bom arquiteto pode encontrar ótimas soluções para um projeto que, inclusive, podem gerar economia de recursos não só na obra, mas na manutenção do imóvel ao longo do tempo. 

Alô pessoal do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil - CAU/BR, tem alguém lendo isso? O recado é para vocês também.

Como arquitetos são pessoas que trabalham bastante, eles não tem tempo para se envolver em questões políticas e de classe. O que é um erro deles. Então, quem ocupa os cargos de direção das entidades de classe? Majoritariamente os sindicalistas e professores universitários, com pouca gente de escritório (de prancheta e de canteiro de obra) ficando nas rabeiras das chapas que distribuem os mesmos cargos de sempre para o pessoal "das cabeças".

Daí que temos um conselho de classe que não entende a nossa realidade e não nos representa de fato, posto que os conselheiros não possuem experiência de mercado. 

Em linhas gerais, o arquiteto brasileiro atuante no mercado é um sujeito pacato de classe média, que tende a ter uma religião e ser de centro na política, quando não um moderado de direita. Estou errado?

Mas as pautas "progressistas" que o CAU patrocina nem de longe contemplam esse perfil, que deveria ser mais empreendedor num país que não gera empregos. Os arquitetos precisam aprender a gerir melhor seus negócios e precisam aprender a vender melhor seus serviços.

Porém, fora algumas iniciativas pontuais, não vejo o CAU incentivar as melhores práticas profissionais. O treinamento mais oferecido é para o recém-formado aprender a preencher um RRT, como se isso fosse um fim em si mesmo: pagar uma comissão para o CAU por cada projeto fechado com descontos progressivos, pois a concorrência desleal aumenta a cada ano e ninguém faz nada para frear o ingresso de gente desqualificada no mercado de trabalho.

Já passou da hora do CAU instituir um exame profissional para validar a formação dos universitários. E já passou da hora de fiscalizar melhor a criação de novos cursos particulares, que se propõem a ensinar Arquitetura e Urbanismo em barracões adaptados de fábricas que faliram no entorno das grandes cidades.

Enfim, não vou me alongar nesse tema. Se tiver que escrever tudo que penso, vou criar uma legião de detratores que nada vão acrescentar ao debate. 

Você é arquiteto ou arquiteta? Já vou avisando: cuide bem do seu negócio. Aprenda a usar as ferramentas de marketing e administração que a faculdade não te entregou. Não espere nada dos sindicatos e dos conselhos de classe. Você está por sua conta e risco. Fortaleça laços sociais com os profissionais mais sérios do seu ramo, pois são eles que poderão te ajudar e vice-versa.

E o mais importante: faça um ótimo trabalho para quem te contrata, sempre!

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sábado, 19 de novembro de 2022

A vida como ela pode ser


Em outubro de 1972 meus pais se casaram numa igreja protestante no bairro de Indianópolis, São Paulo. Naquela época, os casamentos eram mais simples. Não havia tanta preparação, com tanta antecedência e tanta pompa.

Logo depois da Lua de Mel, passada na roça do Rio Grande do Sul, para prestigiar os parentes que não puderam comparecer ao ato religioso, eles se mudaram para o interior paulista, onde começaram a construir uma vida e uma família, juntos.

Meio século se passou. Bodas de Ouro. Incrível. Imaginei que meus pais fariam um grande evento para comemorar. Eles mereciam. Quem sabe uma nova cerimônia no altar, com uma festa num buffet - essas coisas que os mais jovens se empenham para poder eternizar um rito de passagem.

No entanto, eles apenas comunicaram que fariam um almoço na varanda da casa, para os parentes mais próximos. "Não pode ser" - pensei. Já fizemos vários almoços corriqueiros naquela varanda, inclusive sem motivos especiais. 

Mas eles decidiram assim: comemorar suas Bodas de Ouro do mesmo jeito que fizeram para manter uma união tão duradoura. Nesta receita não teve nada de pompa, mas teve uma boa dose de austeridade e resiliência - palavra cujo significado tivemos que aprender na prática, pouco antes das Bodas de Prata.

(...)

"Tudo bem, será um almoço simples, mas vou fazer uma surpresa para todos" - matutei comigo. Liguei para o meu amigo Eduardo Furtado, saxofonista com todas as notas. Amigo não é necessariamente aquela pessoa com quem conversamos todos os dias, mas é aquela pessoa que nos acolhe quando mais precisamos.

A gente precisava de um momento de arte numa data tão importante. Através da arte conseguimos expressar aquilo que as palavras e os clichês não conseguem entregar. A música, em especial, condensa os sentimentos mais autênticos numa linguagem universal. A boa música gera empatia entre as pessoas e, com isso, promove a comunhão que tanto precisamos para suportar este mundo cada vez mais árido.

Então, o Eduardo chegou em nosso cantinho, sem avisar. Os sons harmônicos foram ganhando volume, conforme ele caminhava pelo quintal, até que ele surgiu para todos, tirando lágrimas até dos tios mais turrões, acostumados a lidar com a dureza do cotidiano. Passado o impacto inicial, porém, alguns se voltaram para seus botões.

Se para alguns, o momento foi uma catarse, para outros, pareceu um almoço em churrascaria. É assim que funciona e tudo bem. Não é todo mundo que tem os receptores mentais ajustados para perceber a arte fluindo no ambiente. Um artista deve saber lidar com isso: enquanto alguns apreciam seu empenho, outros seguem conversando sem perceber que a vida escorre pela ampulheta.

De minha parte, estive no grupo majoritário, que se emocionou de verdade. Quando meus pais se casaram, não teve música ao vivo, mas em suas Bodas de Ouro, sim. Então, preciso agradecer ao Eduardo, que é um artista de primeira grandeza, pois traz em sua alma a sensibilidade para executar as mais belas melodias.

O registro desse momento, em vídeo, foi feito de forma amadora. Foi o preço que paguei por ter guardado segredo sobre a surpresa. Deveria ter pensado nisso antes, mas creio que a espontaneidade compensou a falta de planejamento, dado que minha esposa gravou um átimo da vida - não como ela é, mas como ela pode ser.

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sábado, 1 de outubro de 2022

O mundo sem uma copa

O mundo sem uma copa (crônica de Jean Tosetto)

A árvore estava quieta em seu lugar. O ser humano, munido de escada, óculos protetores, luvas de feltro, botinas com bicos de aço e uma motosserra, se aproximou sem fazer perguntas. Ele não perguntou se a árvore queria ter sua copa estraçalhada. Ele simplesmente a estraçalhou.

É o que ele sabe fazer.

Porém, a árvore respondeu. Não com palavras. Não com gritos. Com teimosia. Com a única coisa que uma árvore sabe fazer: seguir o fluxo da vida. Dos ramos amputados, brotaram novos galhos e novas folhas. A clorofila ajuda a curar a sangria da seiva.

Então, o ser humano planeja fazer uma nova visita para a árvore. Disseram que ele pode ir até ela com um balde de óleo de motor de dois tempos, devidamente queimado por motocicletas que não são motosserras.

Um palito de fósforo dará a extrema unção. O velório da árvore, sem velas e sem testemunhas, ocorrerá durante toda a madrugada, concomitantemente com a cerimônia de cremação. Se não destocarem a árvore, se não extraírem suas raízes do solo, ela brotará de novo, lá de baixo.

É o que ela sabe fazer.

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Pílulas que brotam no consciente

O boom e o deslocamento de ar

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quinta-feira, 7 de julho de 2022

Pílulas que brotam no consciente

"Terraço do café à noite" (1888), pintura de Vincent van Gogh  (1853–1890) pertencente  ao acervo do Kröller-Müller Museum de Otterlo, Holanda.
"Terraço do café à noite" (1888), pintura de Vincent van Gogh  (1853–1890) pertencente  ao acervo do Kröller-Müller Museum de Otterlo, Holanda.

Meus amigos, este blog já me serviu de válvula de escape quando trabalhava primordialmente como arquiteto e precisava registrar meus pensamentos além do assunto profissional. Os anos se passaram e, neste momento, a balança se inverteu: hoje sou pago para escrever e editar e-books e livros. Em razão disso, não consigo mais escrever textos inéditos e exclusivos para este espaço, todos os meses. A solução que encontrei for reproduzir as pílulas que escrevo no Twitter e no Instagram. Se em algum momento pintar um inspiração, logicamente escreverei aqui, pois não desejo abandonar o prato onde me alimentei de entusiasmo por tanto tempo. Grato pela compreensão.

* * *

O ser humano é um minerador de sentimentos e emoções. Então, de um mesmo bloco de vida, contexto social e cotidiano, enquanto uns tiram beleza e poesia das coisas mais simples, outros tiram apenas o tédio e marasmo. Pois uns mineram com picaretas e outros com bananas de dinamite.

Ao que tudo indica, nascemos com essas ferramentas e é muito difícil trocá-las ao longo da jornada. Podemos apenas aperfeiçoá-las, mediante reflexões e autoconhecimento.

* * *

Não existe solução aguda para um problema crônico.

Quando crises agudas se resolvem sozinhas, logo são esquecidas. Mas as crises recorrentes, seja na política de um país, seja na saúde de um indivíduo, roubam tempo e atenção das pessoas. As soluções crônicas? Mudanças de hábitos.

Hábitos que são adquiridos paulatinamente com doses cavalares de educação: formal, cívica, física, alimentar e financeira, entre outras. Como isso leva tempo (mais do que uma geração) o debate sobre isso não se sobressai.

A maioria das pessoas não quer ler ou ouvir a respeito. Elas querem salvadores da pátria, remédios milagrosos, fórmulas mágicas.

Mentiras bem cozidas rendem mais do que verdades cruas.

* * *

"Sonhe grande" - eles dizem. "Dá o mesmo trabalho de sonhar pequeno" - eles complementam. Mas eles não estarão lá quando você criar expectativas além do que pode realizar, pois muita coisa sequer depende de você. O resultado? Frustração.

Sonhe - mas planeje e considere os riscos.

Quando você espera por algo bom que não acontece, você fica triste.

Quando você espera por algo ruim que não se confirma, você sente um alívio.

Por isso é bom transformar sonhos em planos, incluindo o chamado plano B, que é posto em prática quando o plano A não dá certo.

Logo, se você não tem um plano B, seu plano original não é bom o suficiente.

A felicidade não depende da realização de um sonho grande. Isso é conversa para vender livros de autoajuda.

A felicidade, sempre fugaz, brota em momentos de tranquilidade, quando as adversidades inerentes do cotidiano não conseguem perturbar nossa paz de espírito.

* * *

"Trabalhe enquanto os outros descansam, planeje enquanto os outros dormem, estude enquanto os outros se divertem" - e um dia você terá uma crise de ansiedade, um ataque cardíaco, ou quem sabe um AVC. Tudo tem seu tempo. E podemos nos doar 100% de cada vez, inclusive para relaxar.

Uma coisa muito difícil para aprender nestes tempos pós-modernos: relaxar por um tempo, sem sentimento de culpa.

Não querem que você faça isso. Querem te manter sempre ocupado. Sempre com a atenção e o foco na tela de um celular.

Pois se entreter com uma tela é diferente de relaxar.

E relaxar é perigoso: abre brecha para você pensar por contra própria. Para ser criativo.

Por isso criticam o ócio, pois o ócio pode ser criativo. E isso aumenta a concorrência para eles.

Gente criativa é mais difícil de domar.

* * *

Essa é a geração que começa no "all-in" e termina no "burnout". Entram de cabeça na aventura. Mergulham fundo. Aí começa a faltar ar nos pulmões e a superfície está longe demais para aliviar o desespero. Para todos os casos, está tudo bem. Tudo sob controle. A quem pedir socorro?

Não por acaso as grandes religiões monoteístas do mundo ordenam um dia de descanso semanal.

Mas a secularização dos costumes nos convenceu de que a religião é coisa do passado, de gente supersticiosa. Aí veio o capitalismo e nos convenceu de que trabalhar 7 por 24 é algo bom.

Agora, no berço da Revolução Industrial, estão experimentando a jornada semanal de 4 dias úteis.

Ou seja, os pós-modernos estão descobrindo o que os antigos já sabiam há milênios: o ser humano precisa descansar. Isso deveria ser sagrado.

Então, nem "all-in", nem "burnout". O meio termo, defendido por Descartes, é parte da solução.

* * *

Confio mais numa pessoa que me alerta sobre algo que eu poderia ter feito melhor, do que naquela que sempre me elogia. Fala mansa demais me deixa em estado de alerta. De vez em quando um soco na mesa é bom, das duas partes de uma conversa - isto significa que são pessoas de brio.

Não se constrói nada com apatia e indiferença. No fundo, é isso que os fazedores de média tentam camuflar em cada tapinha nas suas costas.

* * *

Os e-books são bons? São ótimos. Mas você precisa de uma tela para ler. E se tem uma tela, tem fonte de distração e tem alguém querendo te monitorar. Por isso, os livros impressos tem seu charme: eles não tem cookies e te desconectam para valer. O livro é uma peça de resistência.

Abra um livro e feche sua mente para os males da hiperconectividade.

* * *

O sujeito contou que sofria de enxaqueca de vez em quando e perguntou se eu tinha dores de cabeça também. Respondi que não, desde que conheci a minha namorada, pois perdi a minha cabeça por causa dela. As pessoas ao redor riram e me taxaram de romântico incurável. Ela sabe disso.

#diadosnamorados

* * *

Quando você tentar dizer apenas o que as pessoas querem ouvir ao invés de dizer o que as pessoas precisam ouvir, então você se tornará mais um escravo dos mecanismos de buscas na rede, que tonificam a mesmice ao invés de provocar o atrito de ideias, sem o qual a gente não evolui.

Você pode ter milhões de seguidores e ganhar um bom dinheiro com isso, mas ainda assim será apenas um escravo das aparências, com medo de ser cancelado.

Além disso, viverá em cima do muro e sentirá medo quando resolver ficar uns dias sem dar as caras. Será rodeado de assessores que te falam apenas o óbvio.

Então, chegará o dia em você desejará ser apenas mais um anônimo, mas não poderá confessar isso.

Pronto. Já escrevi a sinopse do filme. Só falta algum diretor levar a história adiante:)

* * *

Um objetivo nobre, que faz alguém desejar a independência financeira, é não depender dos filhos na terceira idade. Porém é bom lembrar que, emocionalmente, seremos sim dependentes de nossos filhos. Portanto, não devemos esquecer deles agora, quando eles dependem de nós para tudo.

A aula de piano da menina não é um gasto essencial. E daí? Não vou cortar. E vou mandar o elemento para o beleléu se ele vier com essas planilhas que desconsideram os juros sobre a afeição empenhada.

Não é para isso que a gente trabalha?

O pior tipo de pobreza é a pobreza de espírito.

* * *

Dicas quentes para enriquecer mais rápido: adie o casamento, adie o nascimento dos filhos, adie a compra da casa própria, adie a viagem para a Tailândia. Você pode não ficar milionário, mas ao menos terá dinheiro para o terapeuta tratar o vazio inexplicável da sua alma entediada.

Mensagem subliminar do guru da prosperidade:

"Permaneça sozinho, sem um objetivo concreto para buscar, assim fica mais fácil te sequestrar emocionalmente."

Os líderes populistas da política usam a mesma tática.

Eles não te incentivam para buscar educação. Eles não te incentivam a levar o trabalho a sério. Mas é isso que te leva para frente.

O que vem depois do estudo e do trabalho, é apenas consequência: a capacidade de poupar, investir e empreender.

* * *

Você não é especial. Se isso te conforta, também não sou. O que nós, pessoas comuns, podemos fazer para progredir, sem contar com um golpe de sorte? Fazer o que os iludidos, que se acreditam especiais, não fazem: levar os estudos a sério e trabalhar com gratidão pelo dom da vida.

Existe uma falsa noção de que sem estudo e trabalho podemos resolver nossas vidas, pois toda semana alguém fica famoso por causa de um bordão inusitado que viraliza na Internet.

Mas a estatística está aí para mostrar que para cada garoto que usa luva de pedreiro e grita "receba", existem milhares de anônimos que precisam da mesma luva para empunhar uma enxada num canteiro de obras.

Sim, para nós, meros mortais, as coisas demoram para acontecer. Mas acontecem para quem se empenha e não se ilude.

A gente não pode depender de um golpe de sorte, pois o caminho contrário também existe.

* * *

Quando duas pessoas honestas desejam fazer um acordo, elas constroem uma aliança. Quando duas pessoas desconfiadas precisam fazer um acordo, elas estabelecem um pacto. Lembre disso na hora de investir. Quem compra empresas e FIIs deve confiar em seus gestores. Que sejam honestos.

Gravei um vídeo com esta temática. Novidades em breve.

* * *

O jornalismo evoluiu das entrevistas editadas das páginas amarelas da antiga Revista Veja para as entrevistas ao vivo com horas de duração, conhecidas como podcasts. Estes programas são destruidores de reputação e fontes de cancelamento. Esse é o risco de ficar falando sem parar.

Sabe aquele piloto que você admirava na infância? Pois é, ele fala muita asneira.

Mas nos julgamentos sumários da Internet, ele já foi apedrejado. Foi pior do que bater um carro no muro de Indianápolis a mais de 300 km/h.

* * *

2020 foi apenas o prenúncio de uma década difícil que teremos pela frente. Ainda assim, há muita margem de manobra para quem estuda com afinco, leva o trabalho a sério, poupa com diligência e investe com regularidade. Logo, a disciplina e a paciência seguirão fazendo a diferença.

A economia funciona por ciclos e cada fase dura alguns anos. Depois de uma década de crescimento global, com certa bonança, chegou a hora de enfrentarmos tempo nublado.

Torcer para a tormenta passar rápido não vai resolver o problema.

O que resolve é arrumar a casa, ajustar as velas do barco e seguir em frente.

Sem fórmula mágica. Sem ilusões.

Pois você já sabe que quem tentar te vender isso não está te ajudando.

* * *

Há rumores crescentes de uma grande recessão mundial que estaria por vir. Que seja.

Mas? As pessoas continuarão precisando se alimentar, se vestir, se educar, se comunicar, se iluminar, se...

Os fornecedores de bens e serviços continuarão necessários. Seja sócio deles, via Bolsa.

Já tem gente falando o que a maioria quer ouvir:

- Hora de sair da Bolsa e ir para o Tesouro Direto.

Mas estou aqui para marcar posição:

- É hora de comprar Bolsa com aquele dinheiro que não for necessário no curto e médio prazo.

O que parece contra-intuitivo é, na verdade, uma alavanca de crescimento no longo prazo.

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Fragmentos de reflexões a espera de depuração

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quinta-feira, 26 de maio de 2022

Fragmentos de reflexões a espera de depuração

"O caranguejo" (1869), pintura de William-Adolphe Bouguereau  (1825–1905) leiloada pela Sotheby's em novembro de 2010.
"O caranguejo" (1869), pintura de William-Adolphe Bouguereau (1825–1905) leiloada pela Sotheby's em novembro de 2010.

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Quem gosta de fazer as coisas bem feitas no trabalho, um dia será chamado de chato. E quem se importar com isso ou agir para reverter a fama, na tentativa de ser um cara legal, se colocará em risco na carreira, pois quando um negócio mal feito dá prejuízo, ninguém alivia a barra.

Ser chato no trabalho, no sentido de ser caprichoso e atento aos detalhes, é uma coisa, ser grosseiro é outra.

Dá para ser educado e respeitoso no trato com as pessoas. Só não podemos ser negligentes, quando sabemos que as pessoas podem entregar algo melhor (inclusive nós mesmos).

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É o seguinte: se você tiver sorte, vai envelhecer. Seu cabelo ficará branco, suas bochechas despencarão, suas olheiras se aprofundarão e sua barriga aumentará. Então, se você não colocar algo de bom na sua cachola para sustentar uma conversa interessante, aí sim, lamentará. Leia.

E não leia apenas os bons livros. Leia os lugares diferentes que visitar, apreciando sua arquitetura ou belezas naturais. Leia as pessoas de seu convívio, prestando atenção no que elas falam. Leia as refeições com suas papilas gustativas, na tentativa de apreciar sabores distintos. E assim por diante.

Deste modo, quando alguém te perguntar algo, terá a chance de emitir uma opinião relevante. Daí, sua companhia será agradável, mesmo que você não apresente mais o vigor da juventude. A propósito, não desperdice a sua caminhando por aí com fones de ouvidos, um celular na mão e olhos voltados para a tela. Esse tipo de passividade dizima a qualidade de vida e provoca o isolamento das pessoas em relação à realidade.

* * *

Falhar é um verbo intrínseco à condição humana. Podemos falhar tentando fazer a coisa certa, experimentando algo novo. Podemos falhar por falta de conhecimento, querendo aprender. Só não podemos falhar por negligência, pois esse tipo de erro custa muito caro e pode não ter volta.

Vários tipos de erros trazem lições e, por isso, são perdoáveis. Mas a negligência recorrente está associada a um desvio de caráter muito difícil de corrigir.

Por isso, os displicentes não fazem carreiras longas.

* * *

Se a vida acontecesse do jeito que a gente planeja, qual seria a graça? Reformulando: é bom traçar metas e estabelecer objetivos, mas é melhor saber lidar com as adversidades e aprender com os erros, pois essa combinação nos faz valorizar aqueles dias de luzes onde tudo dá certo.

Pior é quando os outros planejam uma vida alheia, ao reconhecer um talento acima da média num jovem, por exemplo.

É o pai coordenando a carreira do garoto de ouro que joga futebol, e ele chega na idade adulta sem nunca ter levado um fora de uma garota, mas é desde cedo cobrado para ser o melhor do mundo.

Ou quem sabe o empresário que dita os rumos da carreira da cantora que não pode engordar e precisa aprender línguas pelas quais não sente identificação.

Aos olhares das multidões, essas celebridades levam vidas perfeitas, mas elas não tem a quem recorrer para preencher o vazio de suas almas, pois tudo o que tem para oferecer aos meros mortais são molduras de um quadro impossível de ser retratado.

Então, é bom saber que estamos por nossa conta e risco, aceitando de bom grado aquilo que a providência nos trouxe para a ordem do dia, quando podemos falhar e receber o perdão de quem nos cerca e nos compreende. Pois são com essas pessoas que dividimos anonimamente nossas pequenas vitórias.

* * *

Um dia alguém vai puxar o fio da tomada e tudo que foi produzido na Internet será apagado. Quando estudarem nosso tempo, no futuro longínquo, serão pelos livros encontrados nos escombros de nossas bibliotecas que arqueólogos e historiadores descobrirão as pistas que nos retratam.

É por isso, entre outras coisas, que trabalho com livros. Isso não tem relação com ser saudosista, posto que os livros impressos são considerados como objetos obsoletos por muitos. Tem a ver com ser visionário, no sentido de produzir provas palpáveis que deixarão rastros do nosso tempo. Que sejam rastros relevantes, dignos de serem investigados.

* * *

Para entender quem é quem no jogo político temperado com as fake news, leia "Hípias menor" de Platão, no qual Sócrates alega que os mentirosos conscientes são mais capacitados que os mentirosos inconscientes. Isso explica a longa carreira de alguns e a súbita derrocada de outros.

É um diálogo curtinho, mas esclarecedor.

P.S.: "Jean, grava um vídeo resumindo esse texto?"

Não, não gravo. Leia que vai te fazer bem.

Haverá quem ache isso um porre e deixará de me seguir. Não tem problema. A gente não joga para a torcida. Estamos aqui para compartilhar o que consideramos realmente relevante - e isso, no fundo, é para poucos.

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Segundo Schopenhauer, a dor e o tédio nos separam da felicidade. Então, muitos enriquecem para fugir da dor e sentem tédio quando atingem a independência financeira, pois não se desenvolveram intelectualmente neste processo. Logo, investir é bom desde que a cultura nos acompanhe.

Todo crescimento patrimonial é bem vindo, desde que acompanhado de crescimento pessoal.

Dinheiro é bom, mas quem só pensa nisso está perdendo o melhor da vida.

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O tempo é um ativo que você apenas perde, sem poder recuperar. A honra também: você nasce com ela e deve fazer o possível para preservá-la. Nenhum acúmulo de patrimônio terá valor se você perdê-la, pois a honra faz parte do seu caráter e as melhores carreiras são feitas com isso.

Honra e caráter: você pode ter, mas não pode dizer que tem, pois são as outras pessoas que podem afirmar isso sobre a sua pessoa, baseadas no conjunto de suas ações.

Logo, faça boas obras: é isso que cabe para cada um de nós.

Tem gente que troca a honra por um mandato eleitoral, outros por um posto no ministério. E tem gente que troca a honra por um aparelho de telefone celular, num assalto de esquina.

Quando o conjunto de pessoas deixa de falar em honra nos debates públicos, sabemos que a sociedade está doente.

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Querer mudar o mundo é uma ideia tão bonita quanto ingênua. Perseguir uma utopia é um desperdício de energia. Mais prudente é saber fazer a leitura da realidade que nos cerca e se posicionar para se proteger do lado ruim dela, para depois ver o que pode ser feito pela comunidade.

Um caminho certo para a infelicidade é querer mudar o mundo sem antes compreendê-lo por completo.

Uma dose de egoísmo, para reduzir nossas chances de sermos vítimas do sistema ou dependentes dos favores de outros, é recomendável, ao contrário do que pregam os pretensos revolucionários.

Em suma: devemos em primeiro lugar cuidar de nós mesmos, depois de nossas famílias e, se for possível, da nossa comunidade. Porém, esqueça: você não vai mudar um país e muito menos o mundo. Não em apenas uma geração.

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Muita gente sofre pois faz da vida uma aventura cinematográfica, que combina exposição exagerada ao risco com final feliz. Só que muitas vezes isso não acontece na realidade. O agravante é que filmes que recomendam prudência não rendem bilheteria. Isso vale para os investimentos.

Para cada pessoa que largou o emprego para construir uma empresa de sucesso, milhares quebraram a cara. Mas não é isso que transparece nas redes sociais.

Para cada cada aventureiro que ganha dinheiro e seguidores postando fotos de suas viagens por aí, quantos ficam no meio do caminho?

Para cada especulador que acertou a mão num ativo que disparou, quantos perderam tudo?

É complicado aceitar que não somos especiais e que para nós as coisas são mais demoradas, mas é justamente quando entendemos isso que começamos a andar para frente.

Disciplina, paciência, preparação, perseverança. É isso que deveria contar.

Mas muitos tem pressa. Para enriquecer. Para emagrecer. Para chegar lá. Para sentir adrenalina. Então, sofrem, pois o mundo tem uma cadência própria, e para entrar em sintonia com ela, precisamos de menos estímulos externos e mais quietude interna. Hollywood detesta isso.

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