sexta-feira, 28 de julho de 2023

Quando estive em Engenheiro Coelho

O goleiro tenta, em vão, agarrar a bola que vem do alto. Arte gerada com o auxílio de inteligência artificial via craiyon.com
O goleiro tenta, em vão, agarrar a bola que vem do alto. Arte gerada com o auxílio de inteligência artificial via craiyon.com

1989

Passei boa parte da puberdade jogando bola. Era goleiro numa escolinha de futebol do bairro João Aranha, mantida pela Prefeitura de Paulínia. Um dia, nosso time foi até Engenheiro Coelho, que na época era um distrito de Artur Nogueira. O nosso professor conseguiu um micro-ônibus para fazer a pequena excursão.

Era a primeira vez que a gente jogaria fora de casa, sem contar os jogos disputados no centro na nossa cidade. A gente não queria fazer feio. No começo da partida, cheguei a pensar que venceríamos o duelo. Atacamos sem parar. Eis que no primeiro contragolpe fiquei sozinho diante do atacante do time adversário. Tentei dar um carrinho na bola, que ainda estava nos pés do oponente, mas ele chutou antes e a pelota passou do meu lado. 1 a 0.

Alguns minutos depois eles vieram sozinhos, mais uma vez. A defesa do meu time tinha ficado no meio de campo. Saí do gol novamente, quando o centroavante deu um balão na bola. Levantei os olhos para ver sua trajetória e me atrapalhei com o sol. Pulei para o alto no instinto, mas a bola passou poucos centímetros acima das minhas mãos e morreu na rede do gol, atrás de mim. Quando fui buscá-la ouvi uns bêbados, que estavam num bar perto do campo, me chamando de frangueiro.

O professor não esperou o jogo se reiniciar. Mandou o goleiro reserva para o aquecimento. Fui substituído antes dos 30 minutos do primeiro tempo. Os caras chutaram duas bolas para o gol. As duas entraram. A ordem foi jogar na retranca desde então, para evitar uma goleada. Perdemos por 2 a 0 e a culpa recaiu sobre mim.

Na volta para casa, ninguém sentou do meu lado. Olhando pela janela, para a zona rural da região, não queria aceitar que não levava jeito para ser jogador de futebol. Porém, nunca mais atuei pela escolinha do bairro. Na virada do ano, meu pai me transferiu para um colégio particular de Campinas. Passei a acordar de madrugada e, durante as tardes, tinha muita lição para fazer.

2005

A vida parecia divertida aos 29 anos. Trabalhava como arquiteto durante a semana e saia para curtir as noites de sábado, afinal de contas, "todo mundo espera alguma coisa de um sábado a noite: sábado a noite tudo pode mudar."

Anunciaram uma festa à fantasia num clube de Engenheiro Coelho. Escolhi ir trajado de Spirit, personagem criado por Will Eisner. Dois amigos foram comigo. Seria legal voltar para lá depois de tantos anos. As expectativas para bons tempos eram semelhantes.

Dentre tantas garotas vestidas como princesas, fui puxar conversa com uma bruxa. A prosa não progrediu muito bem, pois ela era tímida, embora simpática. Sorria mais do que falava e quando falava me soava um pouco ingênua.

- Desculpe perguntar, mas quantos anos você tem?

- 16.

De repente me senti muito velho. Olhei para os lados e percebi que a maioria das pessoas naquele baile eram adolescentes. Então, me senti deslocado. Poderia ser tio daquela menina. Quem sabe os pais dela poderiam ser da minha geração, só um pouco mais maduros.

- Você me dá licença? Preciso ir ao banheiro.

Foi duro encarar aquele espelho embaçado e ver um sujeito ridículo debaixo daquele chapéu, daquela máscara e daquela casaca. Procurei meus amigos:

- Para mim já deu. Espero vocês no carro.

Agarrei o volante com as duas mãos, olhei para o retrovisor e pensei:

"Estou fazendo alguma coisa errada. A vida não pode ser só isso."

Algumas semanas depois conheci a Renata. Ela também tinha 29 anos na ocasião. Estamos juntos até hoje.

2017

Saiu no jornal do almoço que a Orquestra Sinfônica de Campinas se apresentaria na UNASP em Engenheiro Coelho, na nave principal da igreja daquele campus universitário. No programa estava o oratório dedicado à Elias, de Felix Mendelssohn, para marcar a comemoração dos 500 anos da Reforma Protestante. Como luterano, senti o dever de prestigiar o evento com entrada gratuita.

Centenas de pessoas estavam lá. O lugar parecia uma universidade dos Estados Unidos, assim como vemos nos filmes enlatados. Dentre tantas famílias, estava sozinho. Agora não me lembro a razão. Flanei como um fantasma pelo saguão daquilo que aprecia um grande teatro. Caminhei por alguns balcões até que encontrei uma boa cadeira para acomodar-me.

Não consegui prestar atenção nos músicos. Minha cabeça era bombardeada com ideias para um projeto que precisava apresentar em poucos dias. As telas do computador surgiam nas minhas retinas. Então, lembrava que também precisava continuar escrevendo meu terceiro livro, desta vez com uma cobrança inédita para antecipar a entrega. Vozes do empreiteiro me perguntando coisas sobre uma obra em andamento se intercalavam com as vozes do coautor do livro em progresso.

Mesmo diante de tanta confusão mental, consegui raciocinar que, depois da última cantata, haveria um engarrafamento monstro para ir embora. Retire-me do recinto antes disso. Aproveitei para dar uma volta de carro pelas ruelas daquela cidade universitária.

"Acho que não terei tempo de projetar um campus universitário. Isso não vai acontecer. Não dá mais para tentar conciliar tantas atividades ao mesmo tempo. Já fiz muitos projetos. Não serei maior ou melhor arquiteto do que já sou. Preciso dar prioridade para os livros."

Não tardou muito para lançarmos o Guia Suno Dividendos em parceria com o Tiago Reis. Foi o primeiro livro que escrevi a figurar na lista dos mais vendidos, na Revista Veja, na época ainda prestigiada.

2023

As coisas estão indo bem. Não posso reclamar. Isso me faz ter medo de visitar Engenheiro Coelho novamente. Mas cedo ou tarde isso vai acontecer. Quando vou para lá, nunca volto o mesmo.

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terça-feira, 18 de julho de 2023

Pequena biblioteca para investidores principiantes

Homem mergulha na leitura de um livro em sua biblioteca. Arte gerada com o auxílio de inteligência artificial via craiyon.com
Homem mergulha na leitura de um livro em sua biblioteca. Arte gerada com o auxílio de inteligência artificial via craiyon.com

Investir bem é um reflexo de viver bem e vice-versa. 

Para ser um bom investidor é preciso assimilar aspectos técnicos e objetivos, que auxiliam na formação de uma estratégia perene, com foco no longo prazo, baseada na análise fundamentalista, na margem de segurança e na diversificação de ativos que compõem um portfólio que atende aos conceitos do Value Investing (Investimento em Valor) e do Buy and Hold (Comprar e Segurar).

Nada disso será bem-sucedido se não houver controle emocional e isso não costuma ser ensinado no ambiente do mercado de capitais. É preciso buscar fora dele aquilo que nos tornam mais pacientes, disciplinados e equilibrados para lidar com os altos e baixos da renda variável. Essas características também nos fazem conviver melhor com nossos familiares. amigos e colegas de trabalho. Um coisa não está dissociada da outra.

Para investir bem, também precisamos de um propósito de vida, algo bastante subjetivo. Então, não basta seguir apenas os exemplos dos bons investidores. É preciso prestar atenção, também, nos autores que se debruçaram sobre a condição humana ao longo do tempo. Para tanto, a leitura de bons livros é de grande valia.

Considerando essa dualidade, faço minha sugestão para a formação da pequena biblioteca do investidor que deseja viver melhor, deixando claro que muitos outros títulos podem ser adicionados a partir dessas primeiras leituras. Clique nas capas para acessar a loja da Amazon.


Lista de livros objetivos para investir melhor:


1) Faça fortuna com ações, de Décio Bazin. Livro escrito por um investidor brasileiro que propõe um método simples para investir em empresas que pagam dividendos, além de retratar a mentalidade correta para se manter ativo na Bolsa, com relatos históricos do tempo em que as operações eram presenciais.


2) O jeito Warren Buffett de Investir, de Robert G. Hagstrom. Um dos melhores livros introdutórios sobre o investimento em renda variável, de acordo com os preceitos adotados por aquele que é considerado o maior investidor de todos os tempos. Combina aspectos técnicos e comportamentais.


3) O jeito Peter Lynch de investir (One up on Wall Streat), de Peter Lynch & John Rothchild. Escrito em primeira pessoa com ajuda de um escritor profissional, esta obra passa pelos vários tipos de ações e pelos principais aspectos que devem ser considerados na análise das empresas de capital aberto.


4) O investidor inteligente, de Benjamin Graham. Todo investidor de longo prazo que se preza, cedo ou tarde terá a missão de ler este livro escrito pelo pai do Value Investing. As edições mais recentes são enriquecidas pelos comentários de Jason Sweig, jornalista especializado em investimentos que traduz muitos conceitos para uma linguagem mais acessível.


5) Guia Suno Fundos Imobiliários, de Danilo Bastos & Professor Baroni. Os fundos imobiliários - FIIs - são uma classe de investimentos em renda variável que combina bons rendimentos com segurança, resultando em ativos ideias para investidores mais defensivos e conservadores.


Lista de livros subjetivos para viver melhor:


6) O poder do mito, de Joseph Campbell & Bill Moyers. Imagine um podcast gravado antes mesmo da Internet tomar conta das pessoas. Este livro é uma transcrição da série de entrevistas de um mitólogo para um jornalista erudito. Leitura obrigatória para compreender aspectos que ajudam a dar significado para a vida.


7) Saber envelhecer seguido de A amizade, de Marco Tulio Cicero. O jurista romano alega que não existem velhos que ficam ranzinzas, mas ranzinzas que envelhecem. Para o autor, somente duas pessoas honestas podem construir uma amizade duradoura.


8) Aprendendo a viver, de Sêneca. Uma seleção das cartas do filósofo estoico escritas para Lucílio, tratando de temas morais, da brevidade da vida, daquilo que é necessário para ter uma vida mais feliz e tranquila. Leitura curta, mas profunda.


9) Lições de um estoico, de Epicteto. Uma coletânea dos ensinamento de alguém que foi escravo na Roma Antiga, se libertou e formou a própria escola de filosofia, para quem há coisas que podemos controlar a coisas que não podemos controlar. Essencial.


10) Meditações, de Marco Aurélio. Foi originalmente escrito em forma de diário por um imperador romano que, após seu passamento, foi organizado em forma de livro que atravessou os séculos e até hoje é lido e relido por grandes líderes.


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quarta-feira, 10 de maio de 2023

Rita Lee é dona de uma das minhas primeiras lembranças


Eu devia ter uns três anos de idade. Estava no banco de trás do Fusca branco dos meus pais. Meu pai estava ao volante. Minha mãe ao lado, segurava uma câmera de filme Super 8. Meu irmão mais velho estava ao meu lado esquerdo, sem cinto de segurança, com apenas seis ou sete anos. Minha irmã caçula do outro lado. Eu era o filho do meio, então sentava no meio do banco traseiro.1979? Acredito que sim.

O rádio embutido no painel de metal era preto, com dois grandes botões e umas teclas sob o dial. A gente estava chegando em Campinas, passando pela fábrica de biscoitos da Triunfo. Quando ouço a palavra "Campinas", me vem a imagem desse radinho, que estava tocando uma música estranha, que eu não entendia nada.

Anos depois descobri que se tratava de "Mania de Você", de Rita Lee. A música tocava várias vezes ao dia. No consultório da dentista, uma morena alta e magra, havia uma caixa de madeira com dominós, na sala de espera. Eu brincava com eles como se fossem carrinhos num estacionamento. No som ambiente as palavras e a melodia de Rita Lee eram gravadas em minha cuca, no alto de um prédio da Avenida Francisco Glicério, perto da Catedral de Campinas.

A dentista era bonita e muito simpática. Foi atenciosa comigo. Mais do que isso: carinhosa. Lembro do bocão aberto, de olhar para o teto e para o nada, ao mesmo tempo. "Nada melhor do que não fazer nada..." - Rita Lee entrou na minha cabeça desde cedo, pela minha boca e pelos meus ouvidos. Ela tinha a idade do meu pai. Apenas três dias de diferença.

Meu pai, porém, levou uma vida completamente diferente. Enquanto Rita Lee e os Mutantes passeavam de Buggy, meu pai servia o exército. Enquanto Rita Lee se separava dos Mutantes, meu pai se casava com minha mãe. Enquanto Rita Lee fazia sucesso com a banda Tutti Frutti, meu pai trabalhava no turno da noite, numa fábrica. Minha mãe fazia tudo em casa.

Um dia, já na faculdade, comprei um disco dos Mutantes. Mostrei para o meu pai, que disse: "Esses playboyzinhos copiavam os Beatles". Sim, mas eram tão bom quanto eles.

Como sempre, nunca estamos preparados para um partida. Nunca cheguei perto da Rita Lee, mas seu passamento reavivou lembranças que estavam sendo apagadas em minha mente. O que me assusta, porém, é que a geração dos meus pais começou a ir embora. Para sempre. E nós, que ficaremos por aqui por mais algum tempo, o que vamos fazer? Vamos desafiar as convenções da sociedade? Vamos aguentar o tranco de trabalhar duro para pagar as contas e criar nossos filhos?

Sinto que a geração anterior foi muito mais adulta, rebelde, resistente e intensa do que a nossa. Isso me angustia.

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sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Van Gogh descrito pelo ChatGPT (e onde Pinóquio entra nesta história)

"Doze Girassóis numa Jarra" (1888), pintura de Vincent van Gogh (1853-1890) pertencente ao acervo da coleção Neue Pinakothek , em Munique, na Alemanha.
"Doze Girassóis numa Jarra" (1888), pintura de Vincent van Gogh (1853-1890) pertencente ao acervo da coleção Neue Pinakothek , em Munique, na Alemanha.

Todos estão falando do ChatGPT e de sua capacidade de gerar conteúdo via inteligência artificial. Minha curiosidade venceu a minha pretensa resistência ao uso de tecnologia para fazer o trabalho intelectual de um ser humano. Dei o braço a torcer. A seguir, reprodução minha primeira interação com o ChatGPT.

(Antes, abro parêntese para confessar que GPT me lembra Gepeto, o marceneiro da fábula que criou Pinóquio, um boneco de madeira que era capaz de falar e queria ser uma pessoa de verdade, e que se notabilizou por contar mentiras que faziam seu nariz crescer. Seria Pinóquio um protótipo da inteligência artificial? Não deixa de ser assustador o fato de que essa ferramenta revolucionária pode ser usada para contar mentiras, mas nós não veremos nenhum nariz crescendo em função delas. Por isso, tome cuidado. Fecha-se o parêntese.)

Segue a minha solicitação:

Desenvolva uma crônica sobre Van Gogh e seu controverso falecimento.

Segue a resposta do ChatGPT:

"Vincent van Gogh era um artista apaixonado e intenso, conhecido por suas vibrantes pinturas que capturavam a essência do mundo ao seu redor. Sua vida, no entanto, foi marcada por turbulências e tragédias, e sua morte ainda é um mistério que fascina o mundo da arte até hoje.

Van Gogh nasceu em 1853 na Holanda, e desde cedo mostrou talento para a pintura. Ele passou anos viajando pela Europa, absorvendo influências e experimentando diferentes estilos, antes de se estabelecer na pequena cidade de Arles, no sul da França, em 1888. Lá, ele encontrou inspiração nas cores vibrantes da paisagem, e produziu algumas de suas obras mais icônicas, como "Noite Estrelada" e "Girassóis".

No entanto, sua estadia em Arles foi tumultuada. Van Gogh sofria de doenças mentais que o deixavam instável e inquieto, e seu relacionamento com outros artistas da região muitas vezes era tenso. Em dezembro de 1888, ele teve um colapso nervoso e cortou parte de sua orelha esquerda.

Após esse incidente, Van Gogh foi internado em um hospital psiquiátrico em Saint-Paul-de-Mausole, onde passou um ano em tratamento. Durante esse período, ele continuou a pintar, produzindo algumas de suas obras mais emocionantes e intensas. No entanto, sua saúde mental nunca se recuperou completamente, e em julho de 1890, aos 37 anos, ele morreu de um tiro no peito.

A causa exata de sua morte ainda é objeto de debate e especulação. Alguns acreditam que Van Gogh se suicidou devido a seus problemas de saúde mental e ao fracasso comercial de suas pinturas. Outros argumentam que ele foi morto por outra pessoa, possivelmente um adolescente local que o havia provocado anteriormente. A teoria de homicídio ganhou força em 2011, quando dois autores publicaram um livro argumentando que Van Gogh foi baleado por um colega artista chamado Paul Gauguin, que supostamente mentiu para encobrir sua culpa.

Independentemente da causa, a morte de Van Gogh deixou um legado duradouro. Suas pinturas são agora consideradas algumas das mais importantes da história da arte, e suas cores vibrantes e pinceladas expressivas inspiraram inúmeros artistas ao longo dos anos. Sua vida, marcada por sofrimento e luta, é um lembrete de que mesmo aqueles que parecem destinados ao fracasso podem deixar uma marca duradoura no mundo."

Segue o meu parecer:

Estou impressionado. Meus dias como cronista estão contados. Nada do que eu possa escrever de hoje em diante será inquestionável, no sentido de que tenha sido realmente escrito por mim. Sempre poderão desconfiar que fiz uso de inteligência artificial. Será um desafio demonstrar o contrário. Tentarei fazer isso recomendo ao meu passado e às minhas andanças por aí, para recolher coisas que ainda não estão na Internet, para se converterem em matéria prima para esses programas que automatizam a produção de conteúdo.

Em complemento ao que o ChatGPT respondeu, recomendo que assistam ao filme sobre Van Gogh, produzido com técnicas que simulam suas pinturas impressionistas. Um belo exemplo do casamento da tecnologia com a sensibilidade artística dos seres humanos.


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sábado, 17 de dezembro de 2022

Uma reflexão sobre o ofício da Arquitetura na pós-modernidade

Visitar obras: a parte nada romântica, mas fundamental, na rotina de um arquiteto.
Visitar obras: a parte nada romântica, mas fundamental, na rotina de um arquiteto.

15 de Dezembro: Dia do Arquiteto. 

Sinceramente estou em dúvida se é um dia para comemorar ou lamentar. Poucos profissionais trabalham mais (e se estressam mais) do que os arquitetos, a despeito do público em geral imaginar o contrário, envernizando um ofício que outrora já foi respeitado - e não é mais.

Numa obra, o pedreiro não tem registro em conselho profissional. O eletricista também não, nem o servente, nem o ferreiro, nem o gesseiro, nem o carpinteiro, nem o marceneiro. Então, se acontecer algo errado na construção, quem responde? Aquele que tem registro em conselho: arquiteto ou engenheiro.

A responsabilidade de quem projeta e acompanha obras é enorme, o que faz de arquitetos e engenheiros profissionais baratos perto do tanto que eles podem perder se algo de ruim acontecer num canteiro de obras. Acontece que nem os profissionais do ramo sabem disso e os conselhos pouco orientam sobre o assunto.

Na outra ponta, quem precisa pagar pelo serviço de um arquiteto, muitas vezes pensa que ele é apenas um despachante de planta, quando não um atravessador imposto por uma norma burocrática. Poucos tem a noção de que um bom arquiteto pode encontrar ótimas soluções para um projeto que, inclusive, podem gerar economia de recursos não só na obra, mas na manutenção do imóvel ao longo do tempo. 

Alô pessoal do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil - CAU/BR, tem alguém lendo isso? O recado é para vocês também.

Como arquitetos são pessoas que trabalham bastante, eles não tem tempo para se envolver em questões políticas e de classe. O que é um erro deles. Então, quem ocupa os cargos de direção das entidades de classe? Majoritariamente os sindicalistas e professores universitários, com pouca gente de escritório (de prancheta e de canteiro de obra) ficando nas rabeiras das chapas que distribuem os mesmos cargos de sempre para o pessoal "das cabeças".

Daí que temos um conselho de classe que não entende a nossa realidade e não nos representa de fato, posto que os conselheiros não possuem experiência de mercado. 

Em linhas gerais, o arquiteto brasileiro atuante no mercado é um sujeito pacato de classe média, que tende a ter uma religião e ser de centro na política, quando não um moderado de direita. Estou errado?

Mas as pautas "progressistas" que o CAU patrocina nem de longe contemplam esse perfil, que deveria ser mais empreendedor num país que não gera empregos. Os arquitetos precisam aprender a gerir melhor seus negócios e precisam aprender a vender melhor seus serviços.

Porém, fora algumas iniciativas pontuais, não vejo o CAU incentivar as melhores práticas profissionais. O treinamento mais oferecido é para o recém-formado aprender a preencher um RRT, como se isso fosse um fim em si mesmo: pagar uma comissão para o CAU por cada projeto fechado com descontos progressivos, pois a concorrência desleal aumenta a cada ano e ninguém faz nada para frear o ingresso de gente desqualificada no mercado de trabalho.

Já passou da hora do CAU instituir um exame profissional para validar a formação dos universitários. E já passou da hora de fiscalizar melhor a criação de novos cursos particulares, que se propõem a ensinar Arquitetura e Urbanismo em barracões adaptados de fábricas que faliram no entorno das grandes cidades.

Enfim, não vou me alongar nesse tema. Se tiver que escrever tudo que penso, vou criar uma legião de detratores que nada vão acrescentar ao debate. 

Você é arquiteto ou arquiteta? Já vou avisando: cuide bem do seu negócio. Aprenda a usar as ferramentas de marketing e administração que a faculdade não te entregou. Não espere nada dos sindicatos e dos conselhos de classe. Você está por sua conta e risco. Fortaleça laços sociais com os profissionais mais sérios do seu ramo, pois são eles que poderão te ajudar e vice-versa.

E o mais importante: faça um ótimo trabalho para quem te contrata, sempre!

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sábado, 19 de novembro de 2022

A vida como ela pode ser


Em outubro de 1972 meus pais se casaram numa igreja protestante no bairro de Indianópolis, São Paulo. Naquela época, os casamentos eram mais simples. Não havia tanta preparação, com tanta antecedência e tanta pompa.

Logo depois da Lua de Mel, passada na roça do Rio Grande do Sul, para prestigiar os parentes que não puderam comparecer ao ato religioso, eles se mudaram para o interior paulista, onde começaram a construir uma vida e uma família, juntos.

Meio século se passou. Bodas de Ouro. Incrível. Imaginei que meus pais fariam um grande evento para comemorar. Eles mereciam. Quem sabe uma nova cerimônia no altar, com uma festa num buffet - essas coisas que os mais jovens se empenham para poder eternizar um rito de passagem.

No entanto, eles apenas comunicaram que fariam um almoço na varanda da casa, para os parentes mais próximos. "Não pode ser" - pensei. Já fizemos vários almoços corriqueiros naquela varanda, inclusive sem motivos especiais. 

Mas eles decidiram assim: comemorar suas Bodas de Ouro do mesmo jeito que fizeram para manter uma união tão duradoura. Nesta receita não teve nada de pompa, mas teve uma boa dose de austeridade e resiliência - palavra cujo significado tivemos que aprender na prática, pouco antes das Bodas de Prata.

(...)

"Tudo bem, será um almoço simples, mas vou fazer uma surpresa para todos" - matutei comigo. Liguei para o meu amigo Eduardo Furtado, saxofonista com todas as notas. Amigo não é necessariamente aquela pessoa com quem conversamos todos os dias, mas é aquela pessoa que nos acolhe quando mais precisamos.

A gente precisava de um momento de arte numa data tão importante. Através da arte conseguimos expressar aquilo que as palavras e os clichês não conseguem entregar. A música, em especial, condensa os sentimentos mais autênticos numa linguagem universal. A boa música gera empatia entre as pessoas e, com isso, promove a comunhão que tanto precisamos para suportar este mundo cada vez mais árido.

Então, o Eduardo chegou em nosso cantinho, sem avisar. Os sons harmônicos foram ganhando volume, conforme ele caminhava pelo quintal, até que ele surgiu para todos, tirando lágrimas até dos tios mais turrões, acostumados a lidar com a dureza do cotidiano. Passado o impacto inicial, porém, alguns se voltaram para seus botões.

Se para alguns, o momento foi uma catarse, para outros, pareceu um almoço em churrascaria. É assim que funciona e tudo bem. Não é todo mundo que tem os receptores mentais ajustados para perceber a arte fluindo no ambiente. Um artista deve saber lidar com isso: enquanto alguns apreciam seu empenho, outros seguem conversando sem perceber que a vida escorre pela ampulheta.

De minha parte, estive no grupo majoritário, que se emocionou de verdade. Quando meus pais se casaram, não teve música ao vivo, mas em suas Bodas de Ouro, sim. Então, preciso agradecer ao Eduardo, que é um artista de primeira grandeza, pois traz em sua alma a sensibilidade para executar as mais belas melodias.

O registro desse momento, em vídeo, foi feito de forma amadora. Foi o preço que paguei por ter guardado segredo sobre a surpresa. Deveria ter pensado nisso antes, mas creio que a espontaneidade compensou a falta de planejamento, dado que minha esposa gravou um átimo da vida - não como ela é, mas como ela pode ser.

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sábado, 1 de outubro de 2022

O mundo sem uma copa

O mundo sem uma copa (crônica de Jean Tosetto)

A árvore estava quieta em seu lugar. O ser humano, munido de escada, óculos protetores, luvas de feltro, botinas com bicos de aço e uma motosserra, se aproximou sem fazer perguntas. Ele não perguntou se a árvore queria ter sua copa estraçalhada. Ele simplesmente a estraçalhou.

É o que ele sabe fazer.

Porém, a árvore respondeu. Não com palavras. Não com gritos. Com teimosia. Com a única coisa que uma árvore sabe fazer: seguir o fluxo da vida. Dos ramos amputados, brotaram novos galhos e novas folhas. A clorofila ajuda a curar a sangria da seiva.

Então, o ser humano planeja fazer uma nova visita para a árvore. Disseram que ele pode ir até ela com um balde de óleo de motor de dois tempos, devidamente queimado por motocicletas que não são motosserras.

Um palito de fósforo dará a extrema unção. O velório da árvore, sem velas e sem testemunhas, ocorrerá durante toda a madrugada, concomitantemente com a cerimônia de cremação. Se não destocarem a árvore, se não extraírem suas raízes do solo, ela brotará de novo, lá de baixo.

É o que ela sabe fazer.

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