segunda-feira, 20 de março de 2017

Nada contra o outono

Nada contra o outono - por Jean Tosetto

Acordes de violino, executados mentalmente, me acordaram na manhã preguiçosa do último domingo do verão. Por alguma razão que desconheço, acertei a dosagem do café com leite e mel, numa amálgama elevada na temperatura onde o fumegante ainda não queima a língua, entregando um sabor de inspiração.

Seria um desperdício ficar em casa naquele dia. Não precisei pedir duas vezes para a esposa, que prontamente aceitou o convite para almoçar fora, mesmo resfriada.

- Onde?

- No caminho a gente resolve.

Fugindo do agito, fomos para o distrito das casas velhas, nas imediações da zona rural. Para cada restaurante aberto, dois estavam fechados. Para cada porta aberta, outra estava com placa de "vende-se" - e outra com menção de "aluga-se".

Sugeri um lugar que já conhecíamos, mas no meio do caminho vimos a fachada de outro.

- E se for caro?

- Se for caro não voltaremos mais. Não enquanto a nuvem negra sobre o país não se dissipar.

Não respondi exatamente com essas palavras, mas foi no que pensei antes de falar.

A temperatura amena combinava com o azul do céu. Chuviscos ocasionais vinham dele como gotas de orvalho sobre as flores de madeira, que enfeitavam as mesas dispostas diante de um grande quintal, onde crianças brincavam sob as vistas de pais ingressando na meia idade.

Nossa menina sorria despreocupadamente. Eu procurava no cardápio um prato diferente, que não me consumisse tantas horas de trabalho. Antes não atentava para isso, mas agora tal luxo não tem cabimento. Escolhemos um bife recheado com goiabada, a atração principal no teatro de arena onde a plateia era tomada pelo risoto com queijo gorgonzola.

Depois do almoço, a menina não queria ir embora do parquinho. Fui buscá-la perto do balanço. O repórter da TV, em dia de folga, fez algo parecido. Ele me cumprimentou antes que eu pudesse lembrar em que canal estava trabalhando agora.

Não queria voltar para casa tão cedo. Queria respirar ar puro, do alto da montanha, mesmo que isso me custasse para-lamas enlameados. Patinamos num aclive mais acentuado. A menina chorou no banco traseiro. Deixei o carro descer por alguns metros, de ré. Joguei o pneu esquerdo sobre a trilha remanescente de pedriscos. Volante para a esquerda, para a direita e para a esquerda de novo. As rodas tracionando, sem o atrito necessário, quase fizeram o motor ferver. Mas saímos do atoleiro - bela metáfora para lembrar das nuvens negras.

Lá de cima, vimos a grande cidade ao longe, onde as pessoas passavam o último domingo do verão caçando vagas no estacionamento do Shopping, assistindo futebol, ou dedilhando o celular em busca de algo que surpreendesse no Instagram.

O outono está aí, sem o calor radical do verão, sem o chocolate quente do inverno e sem a poesia da primavera. Mas é o que temos por hoje.

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