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Um brasiliano dando a cara a tapa. |
Você não tem obrigação de me conhecer, então me apresento: meu nome é Jean Tosetto, sou um arquiteto que se tornou escritor. Pelo meu sobrenome - e pelo idioma destas palavras - você pode deduzir que sou descendente de italianos que migraram para o Brasil. Sim, sou bisneto de italianos e austríacos por parte de pai, e bisneto de alemães e poloneses por parte de mãe. Porém, meu sangue é bem misturado. Nele você encontrará gotas do sangue de portugueses, africanos, nativos do Brasil, russos e ucranianos. Logo, eu só poderia ser brasileiro.
Porém, aprendi a amar a Itália desde pequeno. Meu avô paterno era torcedor do Palestra Itália e se tornou torcedor do Palmeiras em 1942, quando o ditador Getúlio Vargas publicou um decreto que, em resumo, considerava os cidadãos do chamado Eixo como inimigos da pátria. Deste modo, padeceram incontáveis italianos, alemães e japoneses, que viviam no Brasil e foram proibidos de falar a língua mãe em público. Empresários do Eixo tiveram que entregar seus negócios para administradores brasileiros, e associações esportivas e culturais, cujas denominações faziam referência aos países da tríade conhecida como Roberto (Roma, Berlim e Tóquio), tiveram que abrasileirar seus nomes ou desaparecer.
Eram os anos difíceis da Segunda Guerra Mundial. Mais difíceis para uns do que para outros. Meu bisavô italiano, de quem carrego o sobrenome Tosetto, perdeu a safra de laranja de seu sítio em 1942, pois o decreto de Getúlio Vargas desencadeou uma onda de ódio e preconceito contra imigrantes que vieram da Itália, Alemanha e Japão. Nenhum brasileiro comprou laranjas do meu bisavô italiano naquela safra, quando ele já contava com 77 anos de idade.
Porém, um brasileiro comprou o sítio por um valor abaixo do mercado. Meu bisavô passou os últimos anos de sua vida morando numa pequena casa no centro de Caçapava, recebendo o apoio de seus filhos. E ficou por isso mesmo: ninguém fala em dívida histórica com os imigrantes que escolheram viver no Brasil e pagaram um preço altíssimo apenas por terem nascido num país que, décadas depois, foi considerado um inimigo de Guerra.
Esse foi o prêmio que meu bisavô recebeu por ter acreditado que faria a América no Brasil, onde viveu por mais de meio século e, ainda assim, foi considerado persona non grata no país, por causa de um decreto de Vargas. Ele nasceu no Vêneto, em 1865, durante o período da unificação da Itália (1861 - 1871). Porém, ao contrário do que dizem por aí, ele não ganhou um palmo sequer de terra aqui no Brasil, mas comprou um sítio no interior de São Paulo com suas próprias economias, assim como tantos outros imigrantes italianos que vieram para cá no fim do século XIX e começo do século XX.
Já contei um pouco sobre mim e sobre meu avô e bisavô Tosetto. Preciso contar um pouco sobre meu pai. Em 1998 ele bancou minha viagem de estudos para a Itália, onde aprendi sobre a arquitetura renascentista e a arte em geral, visitando Roma, Firenze, Siena, Veneza. Mântua e Milão. Bem antes disso ele já falava, na mesa de jantar - sempre que o Jornal Nacional noticiava um caso de corrupção na política brasileira - que éramos descendentes de italianos e que tínhamos direito à cidadania italiana.
Meu pai começou a estudar o assunto, pois sempre foi um autodidata para estações de rádio amador, montagem de computadores e aprimoramentos de processos industriais. No começo dos anos 2000, apoiado por uma pesquisa prévia realizada por suas primas, que fizeram um trabalho de resgate da história da família e retificaram documentos importantes, ele foi atrás das certidões restantes de nossos antepassados: de batismo para os mais antigos (que valiam como certidões de nascimento), de casamento e de óbito de toda a linhagem direta da família.
Meu pai escreveu para o pároco de Noventa Vicentina, comuna onde meu bisavô nasceu. O padre localizou a certidão de batismo dele e, gentilmente, respondeu para o meu pai que, então, passou a traduzir os documentos brasileiros com ajuda de um patronato na cidade de Campinas. Tirando o auxílio desse patronato, meu pai fez tudo praticamente sozinho. Ele não contratou advogados ou assessorias especializadas. Levou anos para juntar a documentação e fez o protocolo para o reconhecimento da cidadania italiana no Consulado de São Paulo, em 2005. Ao todo, meu pai beneficiou 45 membros da família Tosetto.
Nós esperamos mais de dez anos na fila, até que o Consulado de São Paulo agendou a entrega final de documentos, já em meados de 2016. Para não se atrasar no dia, ele se hospedou num hotel da Avenida Paulista, a poucas quadras da Estação Paraíso. Fui com ele e testemunhei a data histórica para nossa família. Aquele foi um dos dias mais felizes das nossas vidas, quando a atendente do Consulado disse que tudo estava certo e que seria questão de algumas semanas para recebermos uma correspondência pelos Correios, formalizando o reconhecimento das nossas cidadanias.
Desde então, estive novamente no Consulado da Itália em São Paulo mais três vezes. A primeira com meu pai, que tinha procuração para representar alguns parentes na entrega de seus respectivos documentos. A segunda para solicitar o passaporte e a terceira para a naturalização da minha esposa, num processo que levou mais de quatro anos. Em todas as ocasiões, vestimos nossa melhor roupa: terno, calça social e sapato de couro. Desse modo, sempre fui tratado com respeito no Consulado, mesmo não sendo fluente na língua italiana. Entretanto, falei algumas palavras como:
- Buon giorno!
- Per favore...
- Grazie.
Mesmo quando tive o pedido do meu passaporte negado (pois faltava atualizar uma comprovação de endereço que estava em minhas mãos, mas tinha que ser enviada por carta registrada) fui tratado com educação, ao contrário do que ouvimos dizer por aí, que os funcionários do Consulado são grosseiros com os brasileiros.
Entretanto, vi uma senhorita levar um bela descompostura, bem na minha frente. Também pudera: ela foi ao Consulado vestindo moletom e pantufas. Deve ter falado alguma coisa que a atendente não gostou. Vi outras cenas e ouvi conversas que me fazem reconhecer que sim, existem brasilianos que não falam em "cidadania italiana", mas simplesmente em "tirar o passaporte".
Portanto, é verdade: existem brasilianos que não querem saber da arquitetura e da arte renascentista da Itália, não querem saber quem é Da Vinci, Michelangelo, Alberti, Rafael, Brunelleschi, Dante. Eles estão mais interessados em ver Donald, Mickey e Pateta na Disneylândia, mas não querem chegar lá com o passaporte brasileiro, que exige visto por parte dos norte-americanos.
Por ironia do destino, fiz um projeto residencial para um casal italiano, cuja esposa trabalhava no Consulado de São Paulo. Eles vibraram quando descrevi os brasilianos que chegavam no Consulado tratando os funcionários como tratam qualquer um na rua, com aquela empáfia do "você sabe com quem está falando?"
Infelizmente nós, os brasilianos que realmente temos a Itália no coração, estamos pagando por aqueles que desejam apenas uma caderneta de papel com um brasão rebuscado. Querem o passaporte europeu, mais do que o italiano. Entretanto, o governo italiano, ao invés de aprimorar o procedimento para o reconhecimento da cidadania italiana, prefere tratar todos os descendentes de italianos, do Brasil e de outros países, como meros parasitas, para não usar um termo mais forte.
A maioria dos brasilianos é gente bem estabelecida no Brasil, sem a necessidade de usar os serviços de educação e saúde em solo italiano. Porém, todos na visão de Meloni e Tajani, ministros de uma Itália que se apequena a cada dia, são usurpadores em potencial dos recursos italianos. Para eles, o direito à cidadania em função do sangue, e não do solo, tem limite geracional. No entendimento deles, apenas filhos e netos de italianos nascidos nas Itália terão o direito ao reconhecimento da cidadania italiana. Então, danem-se os italianos bisnetos da diáspora.
Desse modo, sou um cidadão italiano, bisneto brasileiro de italiano nascido em solo italiano. Minha esposa é italiana e nossa filha é italiana. Mas se tivermos mais um filho ou se ganharmos netos no futuro, eles não serão mais italianos. Ou seja: Meloni e Tajani querem colocar prazo de validade na qualidade do sangue das pessoas. É isso que o decreto deles, de março de 2025, significa, pelo menos até que o parlamento italiano se manifeste.
Assim, eles não estão arranjando briga comigo. Afinal de contas, agora sou um italiano de segunda classe. Mas eles estão comprando bronca com o legado do apóstolo Paulo de Tarso e do jurista Marco Túlio Cícero, defensor máximo da República Romana, da qual a República Italiana é herdeira cultural e histórica.
O Ocidente é o Ocidente em função de São Paulo, nascido em Tarso, na atual Turquia, e não na península itálica. Porém, além de judeu, São Paulo era cidadão romano, por direito de sangue e não de solo. Acompanhe a seguinte passagem, de Atos dos Apóstolos, capítulo 22:
"25) Enquanto o amarravam a fim de açoitá-lo, Paulo disse ao centurião que ali estava: "Vocês têm o direito de açoitar um cidadão romano sem que ele tenha sido condenado? "
26) Ao ouvir isso, o centurião foi prevenir o comandante: "Que vais fazer? Este homem é cidadão romano".
27) O comandante dirigiu-se a Paulo e perguntou: "Diga-me, você é cidadão romano? " Ele respondeu: "Sim, sou".
28) Então o comandante disse: "Eu precisei pagar um elevado preço por minha cidadania". Respondeu Paulo: "Eu a tenho por direito de nascimento".
29) Os que iam interrogá-lo retiraram-se imediatamente. O próprio comandante ficou alarmado, ao saber que havia prendido um cidadão romano."
Salientando: São Paulo de Tarso era cidadão romano por direito de nascimento. Por isso, ele pôde apelar para Cesar ao ser acusado de corromper as crenças de seu tempo e, por isso, foi levado à Roma. E por isso, cada município brasileiro e italiano tem ao menos uma igreja cristã na principal praça da cidade.
E o que dizer de Cícero, que relatou o Sonho de Cipião, um capítulo fundamental para compreendermos a cultura italiana que permitiu ao cristianismo se difundir para o mundo a partir de Roma? Segue uma passagem atribuída por Cícero ao bravo militar romano:
"E ao olhar para todos os lados, vi outras coisas transcendentalmente gloriosas e maravilhosas. Havia estrelas que nunca vemos daqui de baixo, e todas as estrelas eram imensas, muito além do que jamais imaginamos. A menor delas era aquela que, mais distante do céu e mais próxima da Terra, brilhava com uma luz emprestada. Mas os globos estrelados superavam em muito a Terra em magnitude. Na verdade, a própria Terra me pareceu tão pequena que me fez sentir vergonha de nosso império, que era um mero ponto em sua superfície."
Está na hora de Meloni e Tajani relerem o Sonho de Cipião. A Itália, geograficamente, ocupa uma pequena porção do universo, mas a cultura italiana tem poder para abraçar o mundo, embora este mundo seja apenas mais uma esfera a girar num sistema muito maior do que podemos conceber. Então, limitar o direito de cidadania ao neto de quem nasceu na península itálica é diminuir uma nação em termos históricos, algo muito mais importante do que o aspecto geográfico. Assim, a história vai ignorar a geografia e colocar Meloni e Tajani no mesmo panteão de Vargas, que encerrou sua vida disparando uma pistola contra o próprio peito.
O que resta para nós, cidadãos de segunda classe? Honrar a memória e o esforço dos nossos antepassados. Pouco importa se eles eram italianos, poloneses, africanos ou nativos do Brasil. Nossa família vem acima das pátrias, pois as pátrias, vilipendiadas por ocupantes transitórios do poder, já nos desampararam outras vezes. Porém, numa família honrada, pais cuidam de seus filhos e filhos acolhem seus pais quando chega a adversidade. Sempre foi assim e será assim que sobreviveremos aos desgostos provocados pelas convenções passageiras de gente que se acha mais importante do que os outros.
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