segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

O último aplauso

O corredor central do cemitério de Caçapava.
O corredor central do cemitério de Caçapava.

Numa família com tantos tios, tias, primos e primas, seria ingenuidade pensar que ninguém seria vitimado pela Pandemia. Alguns parentes foram contaminados pelo vírus que veio do Oriente, mas foi batizado com nome científico e sobrenome alusivo às letras gregas. Coitado dos gregos: legaram tanta cultura ao mundo e o mundo agradece nomeando pragas globais com expressões como "Delta" e "Ômicron". Sim, meus primos mais jovens sobreviveram à essa tal de "Ômicron", pois pega mal, muito mal, dizer que o vírus saiu de um certo laboratório secreto, localizado para lá das muralhas que podem ser vistas da Lua.

Dois anos de trincheira, de distanciamento social, de uso de máscaras, de mãos besuntadas com álcool em gel. Bastou um vacilo. Uma visita de alguém que se pensava são, e os primeiros sintomas logo apareceram. Para alguém de idade avançada e corpo debilitado, as vacinas são apenas um alento psicológico, um motivo a mais para se desarmar. Rendido, prostrado, meu tio Gijo foi para o hospital. A intubação foi apenas uma sentença de morte antecipada, ao menos para mim.

No domingo de manhã o telefone tocou logo cedo.

- Seu tio Gijo acaba de falecer.

- Avisa o pai que estou passando aí.

Logicamente, não foi um diálogo tão curto, mas poupemos os amigos dos detalhes. Estava chovendo muito e me ofereci para dirigir por 180 quilômetros, para que pelo menos alguém da nossa casa pudesse dar um último adeus para o irmão mais velho da família.

O frentista do posto de combustíveis, a cobradora do pedágio, a garçonete do Frango Assado de Jacareí, o moço que encheu dois copos de plástico com suco de milho: ninguém sabia que meu tio Gijo tinha morrido. Seguiam suas vidas normalmente, como aliás todos devemos fazer, depois de cumprir o luto. Mas é difícil sustentar um ar de normalidade em dias assim, considerando que ninguém tinha obrigação de saber que alguém tão querido já não estava mais entre nós, afinal de contas, o plantão da Rede Globo não avisou nada.

Meu tio não era de uma escola de samba, nem da Academia Brasileira de Letras. Ele não tinha canal no YouTube e não emitia opiniões contra este ou aquele político. Não cantava funk, nem rap. A única coisa que lacrou em sua longa carreira foram envelopes do banco onde trabalhava. O presidente não vai tuitar lamentando a sua morte. Os caracteres do Jornal Nacional não subirão em silêncio ao fim da edição. Não veremos depoimentos, gravados por webcans, de atrizes ou universitários que o idolatravam. Não importa. Era o tio Gijo para mim. O irmão do meu pai. Quem sabe era, e ainda é, uma alma para Deus.

Para Deus não existe gente anônima.

O tio Gijo era uma pessoa culta. Sua inteligência só não era maior que sua generosidade. Sua alma, embora levíssima, estava aprisionada num corpo cansado e fragilizado depois de mais de oito décadas. Quantos anos a Covid lhe roubou? Dois? Cinco? Dez? Não dá para saber. Porém, seriam anos de sofrimento e de dependência de terceiros em tempo integral. Então, ironicamente, a Covid teria lhe prestado um favor. 

Este era o meu sentimento: de que ele estava aliviado, voltando para a Luz enquanto ainda estamos aqui para cumprir nossas missões. Foi assim que guiei pelas rodovias Dom Pedro e Dutra, atravessando três aquaplanagens, segurando o carro nos braços enquanto o céu chorava cântaros que provocaram sérios danos em várias cidades do estado.

Não houve velório. O caixão estava fechado e veio direto da funerária para a sepultura. Ali se encontravam poucas pessoas para testemunhar o fechamento da gaveta de concreto, durante uma janela de clima tolerável, com chuviscos aleatórios. Enquanto o coveiro cimentava as bordas da tampa, reuni coragem para dizer as seguintes palavras:

- O tio Gijo foi um homem honesto. Ele ajudou muita gente. Se teve alguém que ele prejudicou, foi apenas ele mesmo. Ele honrou a memória do vô Anibal. Ele honrou a memória da vó Ana. Agora chegou a nossa vez de honrar a memória dele, cujo espetáculo que foi sua vida se encerra hoje. E, enquanto a cortina do teatro vai descendo, só me resta pedir uma salva de palmas.

4 comentários:

  1. Tio Gijo será sempre lembrado com carinho por todos. É raro encontrarmos, ao longo da vida, pessoas que demonstram tanta generosidade e gentileza.

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  2. Tio Gijo sempre foi um exemplo para todos nós,um exemplo de amor, empatia, um exemplo de caráter, generosidade e educação, em todos os sentidos! Ele tem um lugarzinho só dele, no coração de cada um que teve o privilégio de conhecê-lo! E nós, sobrinhos, só podemos sentir orgulho e nos sentir privilegiados de ter tido a oportunidade de receber tanto amor do nosso Gijinho!

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  3. Uma pena, querido amigo, que a sua família também acabou sofrendo uma perda nessa grande guerra. Que Deus acolha o seu tio e que a sua família encontre conforto e forças.

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  4. Não convivi muito com o Gijo, pois morei mais de 50 anos em SP, mas li com olhos comovidos seu texto que espelha exatamente a imagem que guardava. Bom, honesto, amoroso e sereno... assim eu me lembro e para sempre lembrarei dele...

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