sábado, 22 de maio de 2021

Que nota você dá para a minha opinião?

"Henrique da Alemanha com seus estudantes", pintura de Laurentius de Voltolina (circa 1300) pertencente ao acervo de Kupferstichkabinett Berlin.
"Henrique da Alemanha com seus estudantes", pintura de Laurentius de Voltolina (circa 1300) pertencente ao acervo de Kupferstichkabinett Berlin.

Quando estava na faculdade de Arquitetura, em meados da década de 1990, a matéria que mais reprovava alunos era "Resistência dos Materiais". O professor dessa disciplina era simplesmente a pessoa mais temida do campus. Ao contrário dos demais mestres, ainda usava terno e gravata para dar aulas e conferia de viva voz a lista de presença, antes de suas explanações, como se fôssemos alunos do ensino fundamental.

Ao contrário dos demais alunos, ele só me chamava pelo sobrenome e sempre me via nas primeiras fileiras da sala. Não porque eu gostasse do assunto, mas porque tinha pavor de ser reprovado e sabia que ficava nervoso em dia de prova. Então, tratei de entender tudo daquelas fórmulas e procedimentos. Realizava os exercícios direitinho. 

Enquanto tudo era só um treino, beleza. Mas um dia o professor anunciou a data do exame semestral. Senti o bloqueio mental na hora, mas não contei para ninguém. Uma menina veio me procurar. Ela estava claramente apavorada. Os cálculos não entrevam na cabeça dela. Pediu minha ajuda.

Diante dela recobrei meu ordenamento mental. Ao tentar ensiná-la, percebi que tinha domínio do assunto. Fiquei feliz, pois ela disse que eu ensinava aquilo de um jeito mais fácil de entender. A confiança tomou conta de mim.

No dia D, na hora H, nem percebi que troquei o sinal de três das quatro questões. Precisava tirar nota cinco para passar direito, ou nota três para ficar de exame. O professor, após corrigir as provas, anunciou as notas em sala de aula, para todos os alunos.

"Fulano, nota 3,5, exame. Cicrana, nota 7,5, aprovada. Beltrano, nota zero, reprovado..."

A menina que ajudei, passando uma tarde fazendo exercícios com ela, tirou um dez redondo - e muito raro. Pensei, naquele momento, que se ela havia tirado dez, eu também tiraria.

"Tosetto, o que aconteceu Tosetto? Nota 2,5. Reprovado."

Como contaria isso para o meu pai? Havia acertado todos os encadeamentos das questões e os valores finais, mas por causa do nervosismo, eram valores trocados - o que era positivo virou negativo em algum ponto da equação. Na prática, isso quer dizer que meus prédios desabariam, caso eu fizesse os cálculos estruturais, pois adicionaria ferragens nas camadas erradas das vigas.

Estava desolado, segurando para não chorar, o que seria uma vergonha imensa. A menina veio perto de mim e tentou entender o que aconteceu. Ela disse claramente que eu havia ensinado o conteúdo da prova para ela. O professor viu a cena.

"Tosetto, vem aqui. Sei que você sabe fazer os cálculos. Você ficou ansioso sem necessidade. Vou deixar você de exame."

O carrasco da universidade abriu uma exceção. Não poderia desapontá-lo e tratei de estudar ainda mais. No dia do exame, imaginava que tiraria dez ou zero. Ao entregar a prova, o professor fez a correção na hora. Acertei os dois primeiros exercícios. Errei os dois finais pelo mesmo motivo: troca de sinais. Nota cinco.

"Tosetto, você tem um problema. Você fica nervoso durante a prova. Mas no dia a dia é um bom aluno. Você passou."

Sem ponto de exclamação, mesmo. Esse era o jeito dele, que apertou a minha mão, olhando dentro dos meus olhos marejados. Até sair daquele anfiteatro, segurei minha alegria. Mas a caminho do carro, no estacionamento, saltitava de felicidade. Dirigindo de volta para casa, abaixei a janela do Fusca e gritei de exaltação em plena rodovia. Acostumado com a notas azuis (A e B) no ensino fundamental, nunca comemorei tanto uma nota cinco.

Anos depois, já formado, passei um fim de semana na praia. Caminhando na areia, me deparei novamente com o professor, só de sunga, acompanhado de sua filha (linda, com todo o respeito). Paramos para conversar e aquilo foi surreal, pois não entrava na minha caixola ver alguém tão rígido e formal de uma forma totalmente descontraída. Naquele momento entendi que o Cicarelli era um ser humano. Não lembro o primeiro nome dele, mas lembro que agradeci novamente seu gesto de benevolência.

Ele ficou sabendo que meus projetos estavam se desenvolvendo bem - e que nenhum deles era inseguro do ponto de vista estrutural, pois o ato de projetar é mais parecido com ensinar alguém que não entende do assunto, do que com a formalidade de sentar numa cadeira de madeira gelada para realizar quatro questões em menos de 50 minutos, numa tarde de inverno.

A uberização das relações humanas

Pulemos um quinto de século no tempo. Ontem telefonei para a corretora de valores onde mantenho uma carteira de investimentos. Queria tirar uma dúvida que o robô do chat não sabia responder. Aguardei numa fila até ser atendido pelo Paulo, de 33 anos. Perguntei o nome dele. Perguntei a idade dele, que me esclareceu o que queria saber e foi além, realizando uma ordem de compra de ativo na mesa de operações para mim, pois aquele procedimento não poderia ser feito via Home Broker.

Não é que hoje chegou um e-mail solicitando uma avaliação formal do atendimento recebido? Fiquei com dó do Paulo. Não queria estar no lugar dele, pois sua profissão é atender investidores por telefone e simplesmente tudo que ele faz recebe algum tipo de nota. Não saberia viver sob tal estresse constante. Avaliei ele positivamente.

Essa mania foi cristalizada pelo aplicativo Uber. Nesta plataforma, os motoristas são avaliados pelos usuários 24 horas por dia, sete dias por semana, a cada simples trajeto realizado. O usuário acorda com as hemorroidas latejando e coitado do chofer, ex-gerente de fábrica, que não tinha uma almofada circular no banco traseiro do carro que era da sua esposa.

Há algumas semanas comprei livros pela Amazon. O sistema da empresa calculou o tempo médio de leitura de cada livro e, dias depois, disparou e-mails solicitando que eu desse notas para cada um, de uma para cinco estrelas. Neste caso, fiquei quieto. Mas percebi que cada vez mais somos todos avaliadores e avaliados, como se notas e estrelas contassem mais do que todo o contexto impossível de ser registrado em planilhas.

Por exemplo, O Manual de Epicteto, escrito por seu discípulo Flávio Arriano, é o suprassumo da filosofia estoica. Atravessou dois milênios inspirando gerações. A Amazon tinha que criar a sexta ou sétima estrela para obras primas como esta. Porém, na página que oferta o livro, vemos que ele tem apenas 4,8 estrelas. A maioria das pessoas reconhece o seu valor, mas apenas uma avaliação negativa derruba a média geral dele. Alguém deu apenas uma estrela para este clássico, com a seguinte justificativa:

"Livrinho de bolso !

Produto muito pequeno ! Apesar do bom conteúdo não servirá para coleção da biblioteca !"

Sim: a pessoa deixou os pontos de exclamação descolados das palavras. Que nota poderíamos dar para ela? Não. Não responda. Avaliar avaliadores seria o cúmulo da simplificação que deixa a nossa vida mais simplória. Dar notas para as coisas e para as pessoas é como tirar fotografias e esquecer do filme que conta as suas histórias. No entanto, são as histórias que contam, literalmente. Não é mesmo, Cicarelli?

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