"São Paulo pregando em Atenas" (1515): pintura de Raphael (1483-1520) pertencente ao acervo do Museu Victoria e Albert, em Londres. |
O judeu Saulo de Tarso nasceu na Cilícia, território que hoje faz parte da Turquia, entre a Europa e a Ásia. Foi educado por fariseus e se destacou a ponto de obter de seus líderes religiosos a permissão para sair pelas cidades do Antigo Israel cancelando os cristãos, estes supersticiosos membros de uma seita que afrontava o judaísmo.
O termo "cancelamento" sequer era usado na época. E o termo "cristão" ainda estava sendo criado naqueles dias, por volta do ano 35 d.C. Depois de Cristo, vejam só! Naquela época não havia Internet e redes sociais, então o cancelamento não se dava com hashtags no Twitter, textões no Facebook e reacts no YouTube. O negócio era mais complicado e envolvia apedrejamentos, açoites e até crucificações. Saulo, por exemplo, consentiu com o apedrejamento de Estevão. Isso fazia parte do radicalismo da época.
Certa vez, a caminho de Damasco, Saulo de Tarso teve a visão de Jesus Cristo, cuja luminosidade intensa lhe cegou por alguns dias. A conversão foi tão impactante que Saulo de Tarso virou o Apóstolo Paulo: o único apóstolo reconhecido na Bíblia que não foi testemunha ocular das andanças de Cristo antes de seu padecimento e ressurreição. Porém, ao contrário dos demais, Paulo sabia ler e escrever como um erudito. Além disso, era muito bom em oratória.
Se Saulo era uma pedra arremessada nos telhados de vidros dos cristãos, Paulo passou a ser o próprio telhado de vidro (que não exista na época, mas serve como força de expressão para você entender como seria dura a vida de Paulo, desde então).
Por onde Paulo andava, arranjava confusão. Por vezes ao lado de Barnabé, por vezes ao lado de Silas, Timóteo e Lucas, que era seu confidente e também sabia escrever muito bem. Eles chegavam nas cidades para fazer suas pregações ao vivo e a cores (não havia TV em preto e branco na época) e não raramente saiam escorraçados dessas localidades, não sem antes levarem uns safanões e algumas chicotadas.
Paulo e sua trupe pareciam uma banda de punk rock se envolvendo em quebradeiras nos bares e porões do mainstream, embora não fossem drogados ou pervertidos sexuais. Porém, eles não eram bem vistos pelos conservadores da ocasião, que volta e meia levavam os pregadores para dormir na cadeia, onde faziam amizade com os carcereiros.
Havia um grande porém nessa história toda: além de ter nascido judeu, Paulo de Tarso também era cidadão romano. Isso era mais valioso do que ter um passaporte da comunidade europeia atualmente. Pessoas pagavam caro para conseguir a cidadania romana, que muitas vezes era recusada. Mas Paulo também a tinha de berço - o que nos faz crer que Paulo tinha um pé na cozinha, se é que você me entende.
Por ser cidadão romano, as lideranças locais podiam até detestar Paulo, mas não podiam fazer qualquer arbitrariedade com ele, que sabiamente apelou para Cesar, quando foi preso mais uma vez, sem ter um julgamento prévio. Isso o levou para Roma, de onde o cristianismo se propagou até os dias de hoje (mas isso é conversa para outro dia).
Em sua breve vida, de pouco mais de 60 anos, Paulo percorreu boa parte da borda oriental do Mar Mediterrâneo, visitando o Chipre, a Síria, a Jordânia, a Macedônia, a Turquia e várias localidades da Grécia. Na Grécia aconteceu um momento chave para o nascimento da Cultura Ocidental (da qual você faz parte, querendo ou não): Paulo, judeu de nascimento, cidadão romano convertido ao cristianismo, se encontrou com os filósofos de Atenas e debateu com eles. Incrível como Hollywood ainda não emplacou um épico sobre este momento.
Esta passagem está registrada no livro de Atos, capítulo 17, versículos 15 a 34 (versão Almeida Revista e Corrigida 2009):
15 E os que acompanhavam Paulo o levaram até Atenas e, recebendo ordem para que Silas e Timóteo fossem ter com ele o mais depressa possível, partiram.
16 E, enquanto Paulo os esperava em Atenas, o seu espírito se comovia em si mesmo, vendo a cidade tão entregue à idolatria.
17 De sorte que disputava na sinagoga com os judeus e religiosos e, todos os dias, na praça, com os que se apresentavam.
18 E alguns dos filósofos epicureus e estoicos contendiam com ele. Uns diziam: Que quer dizer este paroleiro? E outros: Parece que é pregador de deuses estranhos. Porque lhes anunciava a Jesus e a ressurreição.
19 E, tomando-o, o levaram ao Areópago, dizendo: Poderemos nós saber que nova doutrina é essa de que falas?
20 Pois coisas estranhas nos trazes aos ouvidos; queremos, pois, saber o que vem a ser isso.
21 (Pois todos os atenienses e estrangeiros residentes de nenhuma outra coisa se ocupavam senão de dizer e ouvir alguma novidade.)
22 E, estando Paulo no meio do Areópago, disse: Varões atenienses, em tudo vos vejo um tanto supersticiosos;
23 porque, passando eu e vendo os vossos santuários, achei também um altar em que estava escrito: Ao Deus Desconhecido. Esse, pois, que vós honrais não o conhecendo é o que eu vos anuncio.
24 O Deus que fez o mundo e tudo que nele há, sendo Senhor do céu e da terra, não habita em templos feitos por mãos de homens.
25 Nem tampouco é servido por mãos de homens, como que necessitando de alguma coisa; pois ele mesmo é quem dá a todos a vida, a respiração e todas as coisas;
26 e de um só fez toda a geração dos homens para habitar sobre toda a face da terra, determinando os tempos já dantes ordenados e os limites da sua habitação,
27 para que buscassem ao Senhor, se, porventura, tateando, o pudessem achar, ainda que não está longe de cada um de nós;
28 porque nele vivemos, e nos movemos, e existimos, como também alguns dos vossos poetas disseram: Pois somos também sua geração.
29 Sendo nós, pois, geração de Deus, não havemos de cuidar que a divindade seja semelhante ao ouro, ou à prata, ou à pedra esculpida por artifício e imaginação dos homens.
30 Mas Deus, não tendo em conta os tempos da ignorância, anuncia agora a todos os homens, em todo lugar, que se arrependam,
31 porquanto tem determinado um dia em que com justiça há de julgar o mundo, por meio do varão que destinou; e disso deu certeza a todos, ressuscitando-o dos mortos.
32 E, como ouviram falar da ressurreição dos mortos, uns escarneciam, e outros diziam: Acerca disso te ouviremos outra vez.
33 E assim Paulo saiu do meio deles.
34 Todavia, chegando alguns varões a ele, creram: entre os quais estava Dionísio, o areopagita, e uma mulher por nome Dâmaris, e, com eles, outros.
Os filósofos epicureus e estoicos, ao contrário dos fariseus e dos romanos que habitavam o Antigo Israel, não despacharam Paulo do Areópago de Atenas com socos, pedras e chicotadas. Se é verdade que Paulo não convenceu todos naquela ocasião, alguns deram crédito para seu discurso.
O fato é que a região da Grécia foi uma das primeiras do continente europeu a adotar o cristianismo, que até hoje é professado pelos gregos de forma ortodoxa. Sendo a Grécia o berço da filosofia ocidental, podemos afirmar que Paulo de Tarso foi um grande caçador de mitos, posto que a mitologia grega também arrefeceu em função da expansão do monoteísmo cristão.
A verdade é que os próprios epicureus e estoicos já estavam colocando em xeque a dependência das pessoas para compreender o mundo por meio dos semideuses greco-romanos. Nisso, muitos historiadores enxergam mais confluências do que antagonismos entre o Evangelho pregado por Paulo e a conduta de vida defendida por Epicuro, Sêneca e seus seguidores.
Existe, inclusive, cartas apócrifas relatando a correspondência entre Paulo e Sêneca, que eram contemporâneos em Roma. Mesmo que sejam escritos não autênticos, há quem defenda que estes documentos foram responsáveis pela preservação da produção literária de Sêneca, cuja leitura é altamente recomendável. Epicuro, por ser mais antigo, não teve essa sorte e só resquícios do que ele escreveu chegaram até nossos dias, mediante citações de terceiros.
Paulo foi tratado como "paroleiro" por parte dos epicureus e estoicos, mas não sofreu cancelamento por parte deles. O debate entre eles não teve um vencedor declarado. Vale reler o versículo 32:
"E, como ouviram falar da ressurreição dos mortos, uns escarneciam, e outros diziam: Acerca disso te ouviremos outra vez."
Ali o benefício da dúvida foi plantado. Sabe o que isto significa? Que você também deveria "ouvir" o outro lado, lendo mais sobre a filosofia em geral. A Bíblia é uma excelente fonte de inspiração, mas os clássicos da filosofia também são, mesmo que você não conheça uma grande cidade chamada "Sêneca", "Epicuro", "Aristóteles", "Platão" ou "Sócrates". Mas a maior metrópole da América do Sul e uma das maiores do mundo está aí demonstrar qual visão de mundo prevaleceu desde aquele debate histórico no Areópago de Atenas.
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