O capacete do ciclista é uma panela de descompressão. |
Arrasto a seta do mouse para o canto esquerdo inferior da tela do computador e dou o comando para desligá-lo. Só a máquina adormece no final do dia. Minha cabeça continua girando. Várias rotações por minuto tentando antecipar o que precisa ser feito amanhã.
Fecho a porta do escritório. Passo pela porta da sala. Tomo um copo d'água na cozinha. Vou para a suíte, tiro a calça e calço o tênis. Ajeito a panela de descompressão na cabeça, pois o capacete do ciclista é repleto de aberturas por causa disso: para deixar vazar parte dos pensamentos superaquecidos da tarde que se vai.
O portão enferrujado do quintal ruge. Preciso pintá-lo. A grama do jardim roça nas canelas. Preciso cortá-la. Mas não hoje. Agora vou pedalar. Aos poucos deixo as ruas pacatas do bairro e vou para a agitação do centro. Preciso ver gente que não conheço.
Espalharam faixas de pedestres elevadas sobre o asfalto das avenidas da cidade. Mas elas não funcionam a contento. Aponto a roda dianteira da bicicleta para a primeira listra branca, mas ninguém reduz a marcha. Querem ganhar 4 segundos e 67 centésimos na corrida de volta para casa. Finalmente, numa brecha, a gente arranca. Então, os carros que ainda estão longe fazem de conta que diminuem a velocidade. Fazem de conta que são educados.
Passo diante do ponto de ônibus. Mais gente fora do que o coletivo pode botar para dentro. Olhos ansiosos. Olhos perdidos. Olhos compenetrados. Fico escondido atrás das lentes escuras do meu óculos de soldador adaptado, que me deixa com cara de ninguém. Lembro de quando ia do curso de inglês para o João Aranha, nas conduções da AVPP. Ficava pendurado nos canos superiores do corredor central e fingia estar surfando pelas ruas do Jardim Planalto. Aí estenderam o percurso pelo Morro Alto. Foi quando comecei a pedalar, pois era mais rápido ir para o treino de futebol assim.
Sigo em direção ao Supermercado Calegaris. O perfume das árvores me leva de volta para as brincadeiras entre as ruas Maria das Dores e General Osório. Porém, o Roberson não está mais lá. Nem o Kenji, o Hideo e o Massal - exímios jogadores de beisebol, com suas luvas de pegar enxames de abelhas numa braçada só. Não ouço mais os tacos de madeira golpeando o pneu de trator sob as ordens do pai e treinador deles. Nossa coordenação só nos permitia jogar betis. Nisso eu era bom. O Rodrigo e o Ronaldo, onde estarão? A Raquel, o Márcio e o garoto sonso que perdia no rolimã para mim todas as vezes... Esse pessoal sumiu. O perfume das árvores permanece.
Meia volta em direção ao Santa Terezinha. Ruas novamente mais calmas, com casas antigas sendo demolidas para a construção de novas torres de apartamentos. Gente teimosa ainda prepara o feijão para o jantar. Pfuf... Pfuf... Pfuf... Ainda dá para escutar a panela de pressão assobiando. Ou será ilusão? De concreto, a rajada de vento que traz o cheiro do tempero que só uma dona de casa é capaz de elaborar. Duvido que qualquer homem saiba cozinhar feijão decentemente. Minha vó, lá de Caçapava, era campeã nisso. Minha mente abre a porta da casa dela, com visão para o corredor que atravessa os quartos. Vou flanando até a cozinha. Ela está lá, atrás do fogão, com uma mão atenuando as dores da bacia e outra segurando uma colher de pau. Eu não sabia que ela tinha dores na cabeça do fêmur, pois ela sempre sorriu para mim.
O cachorro vira-latas late. Sua pelagem malhada me traz de volta para o guidão. Língua de fora. Ele procura um arbusto para mijar. Nossa, como ele é despreocupado! Ele nunca terá o registro de transferência da matrícula do imóvel de seu cliente negado pelo cartório, pois faltou uma assinatura, com firma reconhecida, de ciência das limitações urbanísticas do loteamento fechado, embora a casa já esteja construída. Será que eles acham que o comprador quer montar um cassino nela? Quem sabe uma peixaria? Como se a administração do empreendimento fosse permitir isso. E depois o presidente quer liberar o porte de armas para o cidadão. Quanta loucura. Interna todo mundo.
A avenida do teatro se descortina diante de mim. Questões do trabalho brotam novamente no consciente. Quando chegar em casa, preciso anotar umas perguntas para o Professor Baroni, para incluir no próximo livro. O que ele pensa sobre fundos de desenvolvimento? Como ele compara os FIIs com os REITs? Ele recomenda FOFs? O passeio ocioso foi produtivo. Quase sempre é.
Deixo de contar meus desejos e arrependimentos inconfessáveis. O capacete - a panela de descompressão - recebeu a emanação desses pensamentos secretos. Sua forração interna deve ter gravado tudo. Ainda bem que não inventaram um leitor de emanações de pensamentos irradiados em objetos. No dia que lançarem esse treco, vou parar de pedalar.
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