sábado, 13 de março de 2021

Um homem não é nada sem as suas ferramentas

Do alicate amarelo para a chave de fenda azul, passando pelo Gran Torino verde.
Do alicate amarelo para a chave de fenda azul, passando pelo Gran Torino verde.

Durante a antiga normalidade o chuveiro da nossa suíte começou a gotejar. Você terminava de tomar seu banho, fechava o registro e o chuveiro não ficava quieto. Torna a girar a manopla com mais força e ainda ouvíamos o chuveiro soltar lágrimas pela noite afora.

A esposa logo me cobrou uma providência. Eu, sempre muito ocupado, resolvi ligar para o meu pedreiro de confiança - um "faz-tudo" que entra em casa feito um cunhado com liberdade para abrir a porta da geladeira e pegar uma cerveja quase vencida, dado que passo meses sem dar um gole. Ele veio num sábado de manhã e matou a charada na hora:

- É o courinho. Precisa trocar.

Vamos juntos para a loja de materiais de construção, conversando sobre futebol e xingando todos os políticos. "Depois de tanto tempo de casado, a nossa mulher vai virando irmã da gente" - ele revelou. O courinho, em verdade um anel de borracha, custou menos de R$ 2.

Nem prestei atenção no que ele fez para trocar o "courinho de borracha". Fui para o escritório e sequer lembro o que fui resolver de tão urgente. Fiz questão de pagar pela visita. Não tenho cunhado.

A pandemia começou.

Então, o chuveiro do banheiro social começou a choramingar também. Não acredito. De novo? Não era de novo. Era no outro chuveiro. Depois que a quarentena passar, resolvo isso. Mas a quarentena não passou.

Tive a brilhante ideia de colocar um balde para coletar os resmungos do chuveiro. Durante a noite o balde quase transbordava. Daí eu esvaziava ele no vaso sanitário. Fiz as contas e concluí que esse tipo de operação consumia menos água. A válvula Hydra é um ladrão de água numa casa. Uma descarga custa uns 20 litros de água. No balde você economiza uns 15 litros ou mais. Funciona, mas não para sempre.

Quando você ignora um problema, ele se resolve sozinho ou aumenta. O gotejamento do chuveiro virou um fio de água. Preciso trocar o courinho, urgente. Chamo o pedreiro? Não! Tenho que fazer isso sozinho.

Fui até o quartinho da bagunça e abri a caixa de ferramentas. Cadê o alicate amarelo? Só achei umas chaves de fenda espalhadas, um martelo e um serrote, fora a montoeira de fios e parafusos que nunca mais vou usar - mas vai que precisa?

Não dá para desmontar o reparo do registro de pressão do chuveiro sem um alicate. Saí para comprar um courinho e o alicate. Acabei comprando um grifo também, para garantir. Toca colocar a máscara, que embaça os óculos, sem os quais não posso dirigir.

- Preciso de um courinho para o reparo do chuveiro.

- De qual marca é o seu reparo?

- Não lembro. Quantos tipos de courinho você tem aí?

- Três.

- Me dê os três, um alicate e um grifo. Vou levar também um sifão para a pia da churrasqueira.

Nesse momento, lembrei de Clint Eastwood no filme "Gran Torino", de 2008. Tenho o DVD dele e inclusive a miniatura do carro que dá nome para a história. Já assistiu? Não darei spoiler. Você tem que ver por si só, para entender que um homem não é nada sem as suas ferramentas.

O sifão eu troquei rapidinho. "Eu sou bom!" - pensei. Não, não sou. Apanhei para tirar o reparo do cano do chuveiro. O conjunto "manopla-canopla-reparo-courinho" parece um foguete que será lançado para levar um satélite em órbita: cheio de módulos que vão se separando aos poucos enquanto tudo vai para o espaço. O parafuso da manopla quase foi para o ralo - o buraco negro que todo banheiro tem.

Nesta operação, consegui a façanha de desrosquear a parte metálica do reparo em relação ao cubo de plástico, que ficou aderido ao cano de cobre, na parede. Tentei puxar com o alicate e quebrei a peça ali mesmo. Desisto. Telefono para o pedreiro, mas ele está concretando um alicerce e só pode vir no dia seguinte.

Não é possível. Eu sou arquiteto. É meu dever saber consertar essa porcaria. Daí que o arquiteto foi pesquisar no YouTube. Incrível, mas tem vários pedreiros, encanadores e até engenheiros que demonstram como é fácil fazer este tipo de serviço. Selecionei um exemplo para você:

Poxa vida! Se esse cara consegue trocar o courinho e filmar ao mesmo tempo, eu também consigo! Peguei uma chave de fenda, fiz uma cunha no cubo de plástico, batendo com o grifo, e ele se descolou do cano. Daí o resto do reparo saiu facilmente. Só que tive que comprar um conjunto novo.

Toca vestir a máscara. Toca voltar na loja de materiais de construção, na véspera do governo estadual decretar o fechamento dela por uma quinzena. A balconista não conseguia encontrar o componente certo. Parecia ser muito antigo. Ela chamou o chefe, que bateu o olho na minha peça e cravou:

- É um reparo da Deca original. O reparo paralelo não vai se encaixar direito.

- Quanto custa?

- R$ 37.

- Nossa, mandar ver! 

No Brasil, muita gente compra as peças paralelas para fazer economia. Então, a balconista nem oferece as peças originais, mas o patrão dela sabe onde tudo fica guardado naquelas prateleiras entulhadas de miudezas para manutenção predial. 

Antes de ir embora, a gente xingou os políticos. Eu e o dono da loja. Se não fossem esses políticos desgraçados, não poderíamos culpar eles por tudo de errado que acontece conosco. Clint Eastwood. Gran Torino. Assista.

Espetei o reparo novo no cano da parede e remontei o conjunto. Não deu certo. A manopla girava em falso. Desmontei tudo, de novo. Percebi que tinha que girar a parte metálica do reparo na parte de plástico até desaparecer a folga. Remontei o conjunto, de novo. Deu certo? Deu certo! O chuveiro finalmente ficou mudo.

Cara, eu me senti o máximo.

Telefonei para o pedreiro, de novo. Ele não precisaria vir até em casa no dia seguinte, mas lhe passei outros serviços, quando a pandemia arrefecer. Pintar o portão e o pergolado. Fazer a manutenção nas calhas e por aí vai. Tem coisas que você até consegue fazer sozinho, mas tem que pagar para outro fazer. O dinheiro precisa girar para parte dele voltar para o seu bolso, lá na frente.

Uma hora vou arrumar aquele quartinho da bagunça e organizar minhas ferramentas. Tenho certeza que vou encontrar o alicate antigo. Um homem que se preza tem que zelar pelas suas ferramentas, pela sua casa e por sua família.

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