sexta-feira, 10 de maio de 2019

Meu primeiro show: Ultraje a Rigor em Paulínia, 1990

Dois álbuns do Ultraje que não podem faltar na discoteca de um roqueiro brasileiro.
Dois álbuns do Ultraje que não podem faltar na discoteca de um roqueiro brasileiro.

Os fãs do Legião Urbana vão estrilar, e a turma que curte Barão Vermelho também. Mas não tinha para Ira!, Titãs, Paralamas do Sucesso, Lobão e os Ronaldos: quem mandava no Rock brasileiro na década de 1980 era o Ultraje a Rigor. Só o RPM era mais popular, mas eles tocavam música Pop, e não o Rock de verdade, no único momento em que ele teve destaque nas rádios por aqui.

Essa é uma opinião claramente turvada, pois para mim eram os Beatles no céu e Ultraje na terra. Mas tem algo que ninguém pode negar: poucas bandas, no mundo, repetiram o feito de Roger Moreira & Cia: lançar o primeiro disco emplacando 9 das 11 músicas nas paradas de sucesso. Até hoje "Nós vamos invadir sua praia" de 1985, responde por metade do set-list da banda, quando ela se apresenta por aí além dos estúdios do SBT, onde gravam o programa de entrevistas do Danilo Gentili.

Em 1990, porém, o Rock nacional vivia seus estertores no mainstream, embora a gente não soubesse disso. Eu, por exemplo, não sabia de nada: tinha apenas 14 anos, mais espinhas na testa que estrelas no céu, nenhuma namorada e sem chance remota de conseguir uma, meu Verdão não ganhava campeonatos e, para piorar, meus pais me trocaram de colégio.

Saí de uma escola estadual de Paulínia e fui para uma unidade particular em Campinas, que eu detestava, assim como detestava acordar às cinco horas da manhã todos os dias e levar ferro nas provas bimestrais de Matemática. Daí se conclui que o ensino público já estava uma calamidade naquela época, e que hoje tenho vontade de xingar até o fim dos tempos aqueles youtubers que acham bacana acordar de madrugada.

A mudança de escola também me tirou do time de futebol do bairro e perdi o contato diário com meus amigos de antes. Os campineiros me chamavam de caipira, capiau, cabeça dinossauro, Pica-Pau, Calvin, Menino Maluquinho...

Era um magrela, cabeçudo e tinha cabelo arrepiado, mas sobrevivi. Somente anos depois a TV veio com essa história de bullying. Eu resolvia meus problemas na porrada mesmo, e também sabia falar mais palavrões que os demais garotos da sala (o lado bom de jogar bola contra a turma do Morro Alto). Eu enfiava a mãe deles na conversa em todas as provocações que recebia.

Minha puberdade foi complicada. O que aliviava para o meu lado era poder colocar um disco dos Beatles na vitrola, todas as noites. O Ultraje a gente ouvia nas rádios mesmo. Minha favorita era a Rádio União. Os locutores sabiam os nomes do meu irmão mais velho e da turma dele, que acabou me adotando.

Nas férias de inverno daquele ano a gente entrou para uma equipe de gincana, que só tinha perdedores, como nós. A Prefeitura de Paulínia promovia jogos recreativos entre os jovens da cidade. Era divertido. Ficamos em último lugar, mas meu irmão ganhou algumas garotas. Para ele não tinha tempo ruim. Uma namoradinha no Baile do Ridículo e mais uma no Baile Havaiano. Outra coisa que me aliviava: conversar com ele antes de dormir.

Para o último dia de férias, a Prefeitura de Paulínia promoveu o grande show do ano na cidade: Ultraje a Rigor! A apresentação seria no domingo de noite e foi no domingo de tarde (encerrando o mês de junho) que descobrimos que o ingresso era uma lata de óleo de soja para caridade. Detalhe: o comércio não abria de domingo, só a banca de jornais (até meio dia) e uma farmácia de plantão.

Toca eu e o Lô (de louco) bater pernas nas ruas do centro, batendo palmas e tocando campainhas nas casas, para pedir uma lata de óleo de soja. A gente ouviu muitos "nãos". Estava anoitecendo. Então resolvi correr para a casa da minha vó. A Vó Hertha que nunca chamei de vovó. Ela nos arranjou as latas de óleo e mais: blusas de lã, pois estava esfriando rapidamente.

A minha blusa era verde e tinha furos nos cotovelos, pois minha vó usava ela para capinar no quintal da casa dela, que me colocou um chapéu de palha também. O tiziu aqui parecia um boia fria. Descemos correndo as ruas do Jardim Calegaris até o campão do centro, que hoje é o Estádio Municipal.

O gramado já estava cheio, mas eu queria ficar bem perto do palco. Só conseguimos isso ficando na frente de uma enorme caixa de som, no lado esquerdo do palco, para quem estava na plateia. Deu tempo de ver o show começar. O primeiro da minha vida.

 "Nossa, ainda vou ser feliz nesta vida" - pensei.

O Ultraje ainda tinha sua formação basicamente original e a banda estava promovendo seu terceiro álbum. Os sucessos vieram um atrás do outro: "Rebelde sem causa", "Mim quer tocar", "Zoraide", Ciúme", "Inútil", "Eu gosto de mulher"...

Energia emanando do palco e um som de estourar os tímpanos. Nem consegui prestar atenção na menina do lado, de quem gostava bastante na sétima série. Sabia que não poderia estragar aquela noite levando um fora dela.

Lembro de duas cenas marcantes naquela apresentação: num solo de bateria o Leospa quase entrou em transe, alternando as batidas com os braços salientes numa camisa cavada, ele olhou para cima e depois para dentro de sua mente. Só ficou o branquinho dos olhos. Quem não curte Rock não entende isso.

O Roger não era o guitarrista principal do conjunto. Ele fazia, e ainda faz, a guitarra base, como o John Lennon dos Beatles. Numa das músicas uma corda da sua guitarra estourou. Ele ficou olhando de um lado para o outro no braço do instrumento, procurando uma alternativa para seguir tocando, até que encaixou os acordes nas cordas mais baixas. Pouca gente percebeu e ele continuou cantando. Um profissional. Acabou a música e trocou de guitarra.

O que é bom dura pouco e depois do show ainda tinha que voltar para casa, na zona rural. Pegamos o último ônibus coletivo da AVPP (Auto Viação Progresso de Paulínia, que a gente chamava de "A Verdadeira Porcaria de Paulínia", de sacanagem). Estava lotado e descemos no ponto final. As últimas luzes das casas da periferia estavam se apagando. Já tinha gente dormindo para começar outra semana de trabalho.

Não consegui dormir. O zumbido dos infernos nos ouvidos não deixava. Foi minha primeira ressaca. Pisquei o olho e o despertador tocou. Primeiro dia de aula. Que droga. Só queria voltar para casa e dormir até o dia seguinte. Mas a lembrança do show ficou. Era muita vibração para ignorar. E depois disso fui em vários espetáculos de Rock. E vou continuar indo.

Os anos de 1990 chegaram e o Rock foi sendo jogado para escanteio, para o canto extremo do dial. No seu lugar vieram a Lambada, o Sertanejo, o Pagode, o Forró, o Funk e essas coisas maravilhosas e muito rentáveis quem vem da terra do arroz com pequi.

Quando me formei em 1999, um dos primeiros CDs que comprei com o dinheiro do meu trabalho foi "18 anos sem tirar" do Ultraje a Rigor, que naquela altura do campeonato tinha passado por várias formações e seguia tocando nos circuitos alternativos. Nunca mais a banda estourou um grande sucesso novamente, não nos parâmetros anteriores. Para mim isso não é problema.


O problema é que no Brasil os músicos são criticados mais por suas posturas políticas do que por suas músicas. Então o Chico Buarque não é cobrado por um grande sucesso recente, mas para os bacaninhas descolados e lacradores o Roger é apenas um cara decadente que foi tocar num talk show de um humorista de direita.

Parem com isso! O Ultraje a Rigor não são os Beatles do Brasil, mas eles são os Beach Boys - o que é uma honra do caramba. Desdenham do Roger do mesmo modo que ignoram o talento do Brian Wilson, por causa de uma banda de Rock com um nome despretensioso.

Mas por falar em talk show, quem nunca sonhou em um dia ser entrevistado num programa como este? Se um dia o "The Noite" me chamasse (não vai acontecer) eu faria questão de agradecer o Roger pessoalmente. Tentaria encontrar minha fita K-7 do Ultraje, que escutava no Fusca a caminho da faculdade, para pedir um autógrafo na capinha dela, que eu mesmo desenhei. Então diria que a história música da brasileira será passada a limpo e que ele terá seu lugar de direito restabelecido.

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