sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Os dinossauros do século 20 que conheceram o mundo sem a Internet

Um dinossauro atravessa a faixa de segurança de uma avenida numa grande cidade. As pessoas caminhando nas calçadas não percebem sua presença, pois estão olhando atentamente para os próprios telefones celulares.
Um dinossauro atravessa a faixa de segurança de uma avenida numa grande cidade. As pessoas caminhando nas calçadas não percebem sua presença, pois estão olhando atentamente para os próprios telefones celulares.

O mundo não era influenciado pela Internet até o começo da década de 1990. Quem viveu nessa época testemunhou como a Web transformou nossas vidas, trazendo benefícios e desafios, como equilibrar a conexão virtual com a realidade, evitando a dependência em relação aos smartphones. É necessário preservar o pensamento crítico e a individualidade, mesmo na era digital.

Se você nasceu nos anos de 1970, 1980 ou no começo dos anos de 1990, então faz parte da última geração que testemunhou o mundo sem a influência da Internet. E portanto, posso dizer que você é um dinossauro do século XX.

Tentarei fazer um relato sobre essa situação sem colocar juízo de valor, porque não quero afirmar o que é melhor, se a vida sem ou com a Internet, pois está aí, não tem como voltar atrás e temos que conviver com isso, mas nós temos que entender que nem sempre foi assim.

Nasci em 1976 e fiz a  escola primária nos anos de 1980, parte do ginásio também nos anos de 1980, o colegial no começo dos anos de 1990. Quando entrei na faculdade em meados daquela década, foi quando a Internet começou a transitar pelos primeiros computadores de mesa nos escritórios e nas casas de algumas pessoas.

Naquela época, para você acessar a Internet, precisava de uma linha fixa de telefone, um equipamento em desuso hoje em dia. Era preciso discar para um provedor, que fazia um ruído estranho na linha, até habilitar o uso da rede para o computador coligado com o telefone fixo da sua casa ou do seu escritório.

Então, muitas pessoas usavam a Internet somente após a meia-noite, porque a ligação telefônica era mais barata nesse horário. Cursei faculdade de Arquitetura e lembro que, em 1998, adquiri minha primeira conta de e-mail gratuita, no Hotmail, por influência do meu pai, que sempre foi autodidata em questões de comunicações e tecnologia da informação.

Uso pioneiro da Web

Tive um site do meu escritório de Arquitetura assim que me formei, entre 1999 e o ano 2000. Fui pioneiro em ter uma página pessoal para divulgar meu trabalho. Isso foi muito bom porque por muitos anos fui o primeiro resultado para buscas no Google de quem digitasse "arquiteto em Paulínia". Então, posso dizer que a Internet me ajudou muito no começo da minha carreira.

Mesmo quando me converti de arquiteto para escritor de livros, a Internet também foi fundamental nesse processo. A empresa onde trabalho hoje me contratou em função das redes sociais, que foi uma evolução dos sites e blogs. Portanto, a Internet foi benéfica para milhões de pessoas ao redor do mundo porque criou novas oportunidades de trabalho e permitiu que as pessoas mostrassem seu talento para outras.

No entanto, no começo dos anos 2000, a Internet ainda era muito restrita ao uso de computadores de mesa, aos desktops. Havia também alguns tablets e computadores portáteis, mas as pessoas não carregavam seus computadores para cima e para baixo. Elas não acessavam a Internet o dia inteiro. Antigamente, as pessoas usavam a Internet ocasionalmente, num momento do dia. Elas tinham vida real lá fora.

A revolução silenciosa começou a acontecer no final dos anos 2000 e início dos anos 2010, quando a Internet ingressou nos aparelhos de telefone celular, quando inventaram o Smartphone. Ele carregava a Internet como se fosse um computador de bolso e foi esse aparelho que mudou radicalmente o comportamento das pessoas, que passaram a frequentar a Internet em vários momentos do dia, a ponto de algumas ficarem o dia inteiro conectadas. E tudo que foge do equilíbrio e da moderação, tem um potencial negativo, destrutivo.

Se a Internet facilitou o acesso de milhões de pessoas ao redor do mundo para bilhões de informações, ela também proporciona que milhões de pessoas fiquem viciadas no hábito de se conectar com a Web. Elas abrem mão de viver no mundo analógico e deixam de perceber as qualidades das coisas. Elas criam um mundo virtual onde tudo parece funcionar bem na cabeça delas, mas elas se desconectam da realidade.

Um observador quase oculto

Gosto de fazer caminhadas ou pedalar a minha bicicleta no final do dia. E para tanto, não levo o meu Smartphone. Não carrego isso em todos os lugares que eu vou. Se estou na minha cidade, prefiro usar um telefone simples de uma geração anterior, que não oferece acesso facilitado para Internet, não tira foto, não grava vídeo. Ele só faz e recebe chamadas.

Tomei essa decisão por duas razões. A primeira é a segurança, porque o Smartphone tem muitas informações pessoais, acesso ao Internet Banking e à corretora de valores. Então, se você perder um Smartphone ou se for assaltado, é muito perigoso, porque boa parte da sua vida depende desse aparelho. Hoje é impossível acessar o Internet Banking no computador de mesa se você não tiver o código oferecido pelo Smartphone, por exemplo.

Então, prefiro um aparelho de telefone celular bem mais simples, que tem um custo muito menor. Se eu for assaltado por alguém, não será um transtorno muito grande.

Mas a segunda razão pela qual carrego esse telefone nas minhas caminhadas ou pedaladas, é para obrigatoriamente perceber o mundo como ele é. Gosto de observar as pessoas e os lugares. Então, vejo muita gente fazendo suas caminhadas com Smartphones nas mãos. Pessoas que levam um cachorro para passear e o animal vai na frente esticando a cordinha, e atrás fica o dono dele olhando para o celular ao invés de brincar com o próprio cachorro e prestar atenção na calçada.

Vejo também algumas mães empurrando o carrinho do bebê com o celular na mão. Elas não estão curtindo o passeio com o neném no carrinho, mas estão olhando para o próprio celular, possivelmente deslizando para ver memes nas redes sociais.

Chances e prazeres desperdiçados

Quando faço uso de ônibus coletivos ou ando no metrô de São Paulo, também vejo pessoas olhando seu telefone bem ao lado de outras pessoas. Mas ao invés de conversarem entre elas, para quem sabe desenvolverem novos relacionamentos espontâneos ou mesmo estabelecer chances de encontrar algum trabalho ou fazer negócios, cada um está com seu telefone. Quantas oportunidades foram perdidas nesse sentido?

Lembro, na minha época de recém-formado, que ia à agência bancária pagar contas. Isso não era possível pelo Internet Banking. Você tinha que pagar os boletos presencialmente. Então, a fila do banco era um evento social. Quantas vezes conheci um cliente em potencial na fila do banco, ou mesmo uma eventual paquera? Isso não acontece mais.

Conheci a minha esposa no balcão de uma farmácia. Fui até a farmácia para comprar um remédio e começamos uma conversa. Convidei ela para tomar um café. Isso era muito comum no mundo analógico, porém é pouco comum nessa era da Internet, onde as pessoas virtualizam tudo, até a compra dos remédios. Você vai concordar comigo que o motociclista que faz a entrega dos remédios não é tão simpático quanto uma garota que está no balcão da farmácia te atendendo.

Como sou um dinossauro do século XX, vou reclamar do Smartphone na mão das pessoas, porque isso tirou o prazer de dirigir nas cidades. Antigamente, para dirigir um carro, você se concentrava essencialmente no volante. Mas muitas pessoas se distraem com o uso de telefone celular ao volante, até com o intuito de se orientar nos destinos, ou seja, elas são dependentes de aplicativos que se valem do GPS.

Então, até para visitar o pai e a mãe na própria cidade, tem gente que usa o GPS porque não consegue memorizar o caminho da sua casa até a casa dos seus pais. Quantas vezes já parei o carro num sinal fechado no cruzamento, sendo o terceiro ou quarto colocado na fila dos carros, e o sinal abre e a primeira pessoa não engata a primeira marcha: pois está olhando para o telefone celular. A mesma coisa acontece com o segundo colocado. Quando você pensa que vai engatar a primeira marcha para atravessar o cruzamento, o sinal fecha de novo. Muitos acidentes de trânsito são provocados em função de pessoas distraídas com o uso de telefone celular dentro do carro.

Isso também acontece nas estradas. Certa vez, estava passando perto do acesso de uma cidade numa rodovia muito movimentada. Um carro me ultrapassou pela esquerda e me fechou para poder entrar na pista transversal. Eu me virei para xingar essa pessoa e percebi que ela tinha um telefone celular no painel do carro. Ou seja, por orientação do programa que usa o GPS, essa pessoa quase provocou um acidente porque ia perder a entrada da cidade e fez isso de forma abrupta.

A nova madrasta

O telefone celular também substituiu a televisão como babá eletrônica das crianças. Antigamente, quando o pai e a mãe precisavam fazer alguma tarefa em casa, ligavam a televisão para as crianças se distraírem. Ou elas brincavam entre os irmãos, com os coleguinhas na rua. Isso acabou. Hoje, quando você quer se concentrar em algo ou não quer dar atenção para o seu filho, o que faz? Dá um Smartphone para ele. 

Isso pode ser terrivelmente prejudicial à geração que nasceu no final dos anos de 1990 e começo dos anos 2000 para cá, pois já não conhecem o mundo em duas frentes: com ou sem a Internet. Então, o conflito entre as gerações é maior, principalmente no ambiente de trabalho, porque nós temos outras referências em relação a quem está chegando agora.

Não estou aqui para pregar contra a Internet e o Smartphone. Essa tecnologia é realmente maravilhosa, abre portas e gera oportunidades de trabalho para incontáveis pessoas. Entretanto, temos que preservar o senso crítico, a capacidade de observar isso como se fosse uma pessoa de fora desse ambiente, para que isso não tome conta do nosso âmago e não se misture com a nossa própria personalidade.

Se você é muito dependente da Internet, reduz a sua capacidade crítica e a sua própria personalidade. Nesse sentido, é necessário pagar o preço de ser um dinossauro do século XX. Por vezes, nós não seremos compreendidos pela nova geração, mas temos que mostrar parâmetros para essa gente.

Faço esse registro, porque quem sabe lá no futuro, daqui a várias décadas, alguém possa encontrar esse depoimento e isso possa ajudar em alguma pesquisa científica ou acadêmica.

A vacina para um mundo hiperconectado? Ler os clássicos

Em um mundo digital, somos bombardeados por informações, nem sempre verdadeiras. A proteção contra esse mar de fake news e desinformação está nos livros clássicos, fontes de sabedoria e discernimento. Mas como escolher?

Italo Calvino se debruçou sobre a importância de ler os clássicos, a ponto dele mesmo escrever um a respeito do tema. Em "Por que ler os clássicos", Calvino apresenta textos sobre Balzac, Borges, Dickens, Flaubert, Homero, Stendhal, Montale, Ovídio, Tolstói, Voltaire, entre outros. Para o autor, "nenhum livro que fala de outro livro diz mais sobre o livro em questão".

Comece a leitura dos clássicos por Calvino, e não pare mais.

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