O goleiro tenta, em vão, agarrar a bola que vem do alto. Arte gerada com o auxílio de inteligência artificial via craiyon.com |
1989
Passei boa parte da puberdade jogando bola. Era goleiro numa escolinha de futebol do bairro João Aranha, mantida pela Prefeitura de Paulínia. Um dia, nosso time foi até Engenheiro Coelho, que na época era um distrito de Artur Nogueira. O nosso professor conseguiu um micro-ônibus para fazer a pequena excursão.
Era a primeira vez que a gente jogaria fora de casa, sem contar os jogos disputados no centro na nossa cidade. A gente não queria fazer feio. No começo da partida, cheguei a pensar que venceríamos o duelo. Atacamos sem parar. Eis que no primeiro contragolpe fiquei sozinho diante do atacante do time adversário. Tentei dar um carrinho na bola, que ainda estava nos pés do oponente, mas ele chutou antes e a pelota passou do meu lado. 1 a 0.
Alguns minutos depois eles vieram sozinhos, mais uma vez. A defesa do meu time tinha ficado no meio de campo. Saí do gol novamente, quando o centroavante deu um balão na bola. Levantei os olhos para ver sua trajetória e me atrapalhei com o sol. Pulei para o alto no instinto, mas a bola passou poucos centímetros acima das minhas mãos e morreu na rede do gol, atrás de mim. Quando fui buscá-la ouvi uns bêbados, que estavam num bar perto do campo, me chamando de frangueiro.
O professor não esperou o jogo se reiniciar. Mandou o goleiro reserva para o aquecimento. Fui substituído antes dos 30 minutos do primeiro tempo. Os caras chutaram duas bolas para o gol. As duas entraram. A ordem foi jogar na retranca desde então, para evitar uma goleada. Perdemos por 2 a 0 e a culpa recaiu sobre mim.
Na volta para casa, ninguém sentou do meu lado. Olhando pela janela, para a zona rural da região, não queria aceitar que não levava jeito para ser jogador de futebol. Porém, nunca mais atuei pela escolinha do bairro. Na virada do ano, meu pai me transferiu para um colégio particular de Campinas. Passei a acordar de madrugada e, durante as tardes, tinha muita lição para fazer.
2005
A vida parecia divertida aos 29 anos. Trabalhava como arquiteto durante a semana e saia para curtir as noites de sábado, afinal de contas, "todo mundo espera alguma coisa de um sábado a noite: sábado a noite tudo pode mudar."
Anunciaram uma festa à fantasia num clube de Engenheiro Coelho. Escolhi ir trajado de Spirit, personagem criado por Will Eisner. Dois amigos foram comigo. Seria legal voltar para lá depois de tantos anos. As expectativas para bons tempos eram semelhantes.
Dentre tantas garotas vestidas como princesas, fui puxar conversa com uma bruxa. A prosa não progrediu muito bem, pois ela era tímida, embora simpática. Sorria mais do que falava e quando falava me soava um pouco ingênua.
- Desculpe perguntar, mas quantos anos você tem?
- 16.
De repente me senti muito velho. Olhei para os lados e percebi que a maioria das pessoas naquele baile eram adolescentes. Então, me senti deslocado. Poderia ser tio daquela menina. Quem sabe os pais dela poderiam ser da minha geração, só um pouco mais maduros.
- Você me dá licença? Preciso ir ao banheiro.
Foi duro encarar aquele espelho embaçado e ver um sujeito ridículo debaixo daquele chapéu, daquela máscara e daquela casaca. Procurei meus amigos:
- Para mim já deu. Espero vocês no carro.
Agarrei o volante com as duas mãos, olhei para o retrovisor e pensei:
"Estou fazendo alguma coisa errada. A vida não pode ser só isso."
Algumas semanas depois conheci a Renata. Ela também tinha 29 anos na ocasião. Estamos juntos até hoje.
2017
Saiu no jornal do almoço que a Orquestra Sinfônica de Campinas se apresentaria na UNASP em Engenheiro Coelho, na nave principal da igreja daquele campus universitário. No programa estava o oratório dedicado à Elias, de Felix Mendelssohn, para marcar a comemoração dos 500 anos da Reforma Protestante. Como luterano, senti o dever de prestigiar o evento com entrada gratuita.
Centenas de pessoas estavam lá. O lugar parecia uma universidade dos Estados Unidos, assim como vemos nos filmes enlatados. Dentre tantas famílias, estava sozinho. Agora não me lembro a razão. Flanei como um fantasma pelo saguão daquilo que aprecia um grande teatro. Caminhei por alguns balcões até que encontrei uma boa cadeira para acomodar-me.
Não consegui prestar atenção nos músicos. Minha cabeça era bombardeada com ideias para um projeto que precisava apresentar em poucos dias. As telas do computador surgiam nas minhas retinas. Então, lembrava que também precisava continuar escrevendo meu terceiro livro, desta vez com uma cobrança inédita para antecipar a entrega. Vozes do empreiteiro me perguntando coisas sobre uma obra em andamento se intercalavam com as vozes do coautor do livro em progresso.
Mesmo diante de tanta confusão mental, consegui raciocinar que, depois da última cantata, haveria um engarrafamento monstro para ir embora. Retire-me do recinto antes disso. Aproveitei para dar uma volta de carro pelas ruelas daquela cidade universitária.
"Acho que não terei tempo de projetar um campus universitário. Isso não vai acontecer. Não dá mais para tentar conciliar tantas atividades ao mesmo tempo. Já fiz muitos projetos. Não serei maior ou melhor arquiteto do que já sou. Preciso dar prioridade para os livros."
Não tardou muito para lançarmos o Guia Suno Dividendos em parceria com o Tiago Reis. Foi o primeiro livro que escrevi a figurar na lista dos mais vendidos, na Revista Veja, na época ainda prestigiada.
2023
As coisas estão indo bem. Não posso reclamar. Isso me faz ter medo de visitar Engenheiro Coelho novamente. Mas cedo ou tarde isso vai acontecer. Quando vou para lá, nunca volto o mesmo.
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