sábado, 5 de março de 2022

A felicidade está sendo ignorada

"No Velódromo" (1912), pintura de Jean Metzinger (1883-1956) pertencente ao acervo de Peggy Guggenheim Collection em Veneza, Itália.
"No Velódromo" (1912), pintura de Jean Metzinger (1883-1956) pertencente ao acervo de Peggy Guggenheim Collection em Veneza, Itália.

Os grandes filósofos e poetas da Antiguidade viviam num mundo rudimentar que os forçava a perseguir a felicidade com as poucas ferramentas que tinham em mãos, numa Europa que ainda não havia descoberto as Américas e as grandes ilhas da Oceania. 

Deste modo, Diógenes pregava a completa renúncia aos bens materiais, na companhia de seus fiéis companheiros, os cães. Epícuro valorizava a força da amizade, visando compartilhar momentos efêmeros de reflexão sobre a vida. Sêneca pregava o cultivo das virtudes, como lavouras onde eventualmente as flores - os prazeres - poderiam colorir o dia. Já Ovídio se ocupava dos segredos da sedução. 

Todos, à sua maneira, nos legaram ingredientes para constituir nossa receita individual para cozinhar refeições de felicidade, pois a gente sabe que ela nunca será plena e contínua, dado que nossa fome a respeito dela logo nos encontra, assim que levamos o prato até a pia.

Já imaginou se estes pensadores pudessem viajar no tempo para ter contato com as invenções, descobertas e intercâmbios de culturas que enriqueceram o velho continente?

Será que Diógenes abriria mão de suas renúncias, para arranjar um emprego e ter dinheiro para comprar ração para seus cães, fora as consultas regulares com os veterinários? Os cães estão cada vez mais exigentes: vestem coletes de lã, são tosados a cada quinze dias e até festejam aniversários. Muitas pessoas, hoje em dia, se sentem felizes apenas quando voltam para casa no fim do dia e encontram seus cães esperando no rodapé da porta do apartamento.

Epícuro era chegado numa cumbuca de repolhos. Consegue imaginar ele saboreando um pedaço de pizza napolitana? Isso seria impossível no seu tempo, pois o tomate é um fruto originário da América Latina, sendo muito apreciado no México. Somente depois de 1500 seu sabor encantou os europeus, encontrando no sul da península itálica uma aclimatação perfeita. Você conhece alguém que fica triste saboreando uma Margherita?

Já viu uma criança chorar por ser obrigada a comer uma porção de batatas fritas? Pois as batatas também se originaram nas Américas, mais precisamente na Cordilheira dos Andes, entre a Bolívia e o Peru. Os conquistadores espanhóis não levaram apenas quantidades imensas de ouro para a Europa, mas também o cultivo das batatas. Quem liga para uma salada de repolho servida em talheres de ouro, quando pode besuntar os dedos comendo filetes de batatas? Tudo bem, é um momento de felicidade com sentimento de culpa, mas ainda assim é um momento de felicidade.

E se Epícuro sorvesse uma xícara de cappuccino numa mesinha da Piazza Navona em Roma, na companhia de Sêneca? Como cada um reagiria à mistura de leite com café e chocolate? O leite já era conhecido deles nos tempos antigos, mas o café, cultivado primeiramente na Etiópia, só teve sua primeira loja na Europa em 1495, na cidade de Constantinopla, conhecida atualmente como Istambul. Já o chocolate, feito a partir da amêndoa fermentada e torrada do cacau, é mais um alimento que surgiu na América, só encantando os europeus por volta de 1600. Café. Chocolate. Consegue imaginar sua vida sem isso? Nem estamos falando da felicidade em si mesma.

Sêneca se deliciaria com duas invenções: a imprensa de Gutenberg, desenvolvida por volta de 1430, que veio a baratear e difundir a produção e distribuição de livros; e o fonógrafo inventado em 1877 por Thomas Edison, aperfeiçoado por Alexander Graham Bell. Quem aprende a gostar de ler, sabe o prazer que isso significa. A leitura de um bom livro é uma fonte intermitente de felicidade. Poder ouvir um disco dos Beatles, mesmo tendo perdido a chance de ir a um porão de Liverpool, é igualmente uma felicidade em forma de Long Play.

Consegue conceber a cena de Ovídio aprendendo a tocar guitarra com George Harrison? Poemas inteiros seriam escritos sobre a arte de emular a beleza da mulher, enquanto se dedilha uma Rickenbacker de 12 cordas. Paul McCartney ficaria com inveja e logo trataria de compor "Here, There and Everywhere".

Nem estou falando de viajar de carro conversível por uma estrada a beira mar, num entardecer de verão, pois isso é algo inalcançável para a maioria das pessoas. Mas aqueles que se recusam a pedalar uma bicicleta não sabem o que estão perdendo. Se tem um produto que deveria ser subsidiado por todos os governos, com isenção de impostos e linhas de crédito facilitado, são as bicicletas. Em cada casa deveria ter pelo menos uma. 

Fazer o sangue circular, enquanto você gira os pedais com suas pernas e comanda o guidão com seus braços, é uma excelente preparação para ter uma conversa instrutiva com alguém mais culto. Como seriam chamados os peripatéticos se, ao invés de caminhar com Aristóteles pelo entorno do Liceu, em Atenas, eles pudessem pedalar junto com ele por estradas de cascalho, entre campos de frondosas oliveiras?

Olhe para o seu lado. Veja quanta felicidade está sendo desperdiçada, nesse exato instante. A gente nem falou da máquina fotográfica, do cinema, de Charles Chaplin, de Sophia Loren. Quem está roubando a felicidade de nós? O espelho, o telefone celular, as redes sociais, o dinheiro, as ambições, os vícios? 

As bombas russas?

Os átimos de felicidade estão aí. Temos muito mais ferramentas e conhecimento tecnológico do que os antigos para capturar essas partículas de alegria. Entretanto, por querer sempre mais, a gente não dá valor para tudo de bom que já conquistamos.

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