sábado, 19 de novembro de 2022

A vida como ela pode ser


Em outubro de 1972 meus pais se casaram numa igreja protestante no bairro de Indianópolis, São Paulo. Naquela época, os casamentos eram mais simples. Não havia tanta preparação, com tanta antecedência e tanta pompa.

Logo depois da Lua de Mel, passada na roça do Rio Grande do Sul, para prestigiar os parentes que não puderam comparecer ao ato religioso, eles se mudaram para o interior paulista, onde começaram a construir uma vida e uma família, juntos.

Meio século se passou. Bodas de Ouro. Incrível. Imaginei que meus pais fariam um grande evento para comemorar. Eles mereciam. Quem sabe uma nova cerimônia no altar, com uma festa num buffet - essas coisas que os mais jovens se empenham para poder eternizar um rito de passagem.

No entanto, eles apenas comunicaram que fariam um almoço na varanda da casa, para os parentes mais próximos. "Não pode ser" - pensei. Já fizemos vários almoços corriqueiros naquela varanda, inclusive sem motivos especiais. 

Mas eles decidiram assim: comemorar suas Bodas de Ouro do mesmo jeito que fizeram para manter uma união tão duradoura. Nesta receita não teve nada de pompa, mas teve uma boa dose de austeridade e resiliência - palavra cujo significado tivemos que aprender na prática, pouco antes das Bodas de Prata.

(...)

"Tudo bem, será um almoço simples, mas vou fazer uma surpresa para todos" - matutei comigo. Liguei para o meu amigo Eduardo Furtado, saxofonista com todas as notas. Amigo não é necessariamente aquela pessoa com quem conversamos todos os dias, mas é aquela pessoa que nos acolhe quando mais precisamos.

A gente precisava de um momento de arte numa data tão importante. Através da arte conseguimos expressar aquilo que as palavras e os clichês não conseguem entregar. A música, em especial, condensa os sentimentos mais autênticos numa linguagem universal. A boa música gera empatia entre as pessoas e, com isso, promove a comunhão que tanto precisamos para suportar este mundo cada vez mais árido.

Então, o Eduardo chegou em nosso cantinho, sem avisar. Os sons harmônicos foram ganhando volume, conforme ele caminhava pelo quintal, até que ele surgiu para todos, tirando lágrimas até dos tios mais turrões, acostumados a lidar com a dureza do cotidiano. Passado o impacto inicial, porém, alguns se voltaram para seus botões.

Se para alguns, o momento foi uma catarse, para outros, pareceu um almoço em churrascaria. É assim que funciona e tudo bem. Não é todo mundo que tem os receptores mentais ajustados para perceber a arte fluindo no ambiente. Um artista deve saber lidar com isso: enquanto alguns apreciam seu empenho, outros seguem conversando sem perceber que a vida escorre pela ampulheta.

De minha parte, estive no grupo majoritário, que se emocionou de verdade. Quando meus pais se casaram, não teve música ao vivo, mas em suas Bodas de Ouro, sim. Então, preciso agradecer ao Eduardo, que é um artista de primeira grandeza, pois traz em sua alma a sensibilidade para executar as mais belas melodias.

O registro desse momento, em vídeo, foi feito de forma amadora. Foi o preço que paguei por ter guardado segredo sobre a surpresa. Deveria ter pensado nisso antes, mas creio que a espontaneidade compensou a falta de planejamento, dado que minha esposa gravou um átimo da vida - não como ela é, mas como ela pode ser.

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