A churrasqueira em ação no dia 31 de dezembro de 2020. |
O ser humano tem uma vontade quase incontrolável de preencher todos os espaços disponíveis. O mesmo se dá em relação ao tempo, ao menos para quem já sucumbiu à lógica capitalista da pós-modernidade: todo tempo deve ser ocupado com alguma atividade útil.
Este foi o grande baque que a humanidade sentiu logo no começo da pandemia: a quarentena forçada em casa fez aparecer algumas horas de ócio que antes pareciam não existir. Então, toca refazer o rejunte de alguns pisos no banheiro, arrancar a erva daninha do gramado, podar as moitas de pingos de ouro, arrumar a papelada.
Logo, uma caixa de papelão recebeu uma pilha de papéis inúteis e vencidos que, no entanto, não poderiam ir para o lixo, pois continham dados bancários, endereços, CPFs. O certo era picar um por um, mas quem teria paciência para tanto?
Então, a caixa de papéis velhos ficou lá, sobre a grelha da churrasqueira. Não tardou para descobrimos outras formas de ocupar o tempo, como trabalhar ainda mais, pois poder trabalhar era sinal de grande privilégio, sem deixar de ser uma eficiente terapia.
Como os mais pessimistas (ou seriam os mais sensatos?) anteciparam, a quarentena virou um tipo de ano sabático manco. O trabalho continuou, mas as viagens de fim de semana cessaram e os almoços em restaurantes também, ao menos para os mais medrosos - ou seriam os mais sensatos?
Oito, nove meses depois da normalidade ter ido para a estratosfera, muitos entregaram os pontos: resolveram extravasar nas festas de fim de ano. Não bastava se esbaldar na falta de prudência: era preciso postar tudo nas redes sociais.
Uma multidão de zumbis anestesiados - dos adeptos dos pancadões ao presidente, passando pelas celebridades do futebol - decidiu que o vírus coroado teria que respeitar a folhinha do calendário e que a virada do ano seria também a virada para um "novo normal".
"Os velhos e os medrosos (os sensatos?) que se vacinem, que se explodam."
Minha esposa cansou de esperar que eu desse um jeito naqueles papéis amontoados na caixa de papelão sobre a grelha da churrasqueira. Ela resolveu queimar um a um, fazendo um churrasco de pensamentos e memórias embaralhadas, usando aqueles papéis como carvão.
Fui ao supermercado, portando máscara, rezando em silêncio, pedindo proteção. Comprei um saco de carvão, uma bandeja de espetinhos, outra de contrafilé, sal grosso rosa do Himalaia e um bocado de pão de alho recheado com queijo e linguiça calabresa moída. Não podia faltar o vinho frisante.
Quando voltei, minha dona já tinha raspado as cinzas da churrasqueira. Passaríamos a noite de Reveillon só nós três. A gente e a nossa filha. Nem me lembrava da última vez que tinha tentado acender o fogo daquela churrasqueira. Nunca fui bom nisso.
Montei uma espécie de pirâmide com os tocos de madeira reflorestada. No lugar do sarcófago do faraó, torci em forma de cálice um pedaço de papel daquele saco de carvão. Risquei um palito de fósforo. Dois, três, doze palitos de fósforo.
As chamas teimavam em apagar. Não era possível. Tentei de novo e de novo. Lembrei de usar uma aleta de papelão para soprar ar nas fagulhas. Cansei o braço, mas finalmente deu certo: sorri feito um escoteiro e logo me dobrei ao fato de que isso era comum aos homens das cavernas.
Lá estava eu, na minha caverna particular, começando a queimar as últimas horas de 2020, um ano que vai definir um século inteiro. Olhei para trás e vi minha família esperando para fazer a ceia. Subitamente entendi a razão de tantos homens adorarem fazer churrasco. É um ritual milenar.
O queijo derretido dos pães de alho fizeram as chamas da churrasqueira ficarem no ponto ideal para assar os espetinhos. Ligamos o rádio para ouvir as 500 músicas mais pedidas de uma estação que só toca Rock, enquanto preparei os bifes de contrafilé.
- Salgue a carne sem dó, pois ela absorve o sal que precisa e o resto ela solta na churrasqueira.
Pude ouvir a voz de um tio gaúcho me aconselhando. Apenas duas ou três viradas para os bifes pegarem um bronze e ficarem macios. Deu certo. Não acreditei que fiz um churrasco minimamente decente. Pena que não havia uma multidão de parentes e amigos para testemunhar.
2021 começou ao sabor de goles de lambrusco rosso, de uma marca sugestiva: "Sogno Italiano". Que seja um ano de reconstrução do que era bom antes de 2020 e de construção do que precisa ser bom daqui para frente.
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