quinta-feira, 8 de agosto de 2019

É feliz quem vende a felicidade?

Máscaras de teatro retratadas em mosaico de autor desconhecido do Século II, expostas no Palazzo Nuovo de Roma, Itália.
Máscaras de teatro retratadas em mosaico de autor desconhecido do Século II, expostas no Palazzo Nuovo de Roma, Itália.

Todo dia de manhã faço uma breve varredura pelos meus sites favoritos, dentre eles o YouTube. Como trabalho com produção de conteúdo voltado para a educação financeira, com foco em renda variável, os robôs do Google ficam me sugerindo vídeos de pessoas que são consideradas influenciadoras digitais na área de investimentos.

Como boa parte delas, aparentemente, já esgotou o assunto sobre finanças e dados fundamentais da área que as projetaram para a notoriedade, elas estão partindo para dar conselhos diversos sobre saúde, comportamento e até decoração de interiores.

Na maioria das vezes leio os títulos dos vídeos e passo reto, mas alguns chamam tanta atenção que sinto a tentação de assistir. Então descubro, pela ótica de tais mestres da comunicação de massa, que sou um dinossauro do Século XX.

Vejamos: moro em casa própria e, na falta de um carro, tenho dois. Que absurdo! E o pior: não acordo às cinco da manhã e tomo banhos de mais de dois minutos.

Em suma: se a humanidade acabar, serei um dos culpados. No mínimo, estou condenado a ser pobre e infeliz. É isso mesmo? Acho que não.

Sobre ter casa própria, já dediquei artigos sobre o tema. Um deles está publicado neste link, de modo que não vou repetir argumentos sobre este ponto, salvo lembrar que não é pecado desejar e possuir um teto.

Afirmei que morar sob o próprio teto não é pecado: não afirmei que não é caro. Minha casa custou muito caro. Não me refiro aos materiais de construção, pois estes foram comprados mediante pesquisas de preço e qualidade. Minha casa custou caro, pois ela atrasou meu processo de busca pela independência financeira.

Já fui solteiro, já tive 15 quilos a menos e muito mais cabelos. Na primeira década do Século XIX estava construindo uma casa para vender. O ciclo do mercado imobiliário, na minha cidade, estava escalando os picos mais altos. As margens de retorno eram excelentes. Porém, no meio do caminho, decidi casar e que não ia começar um matrimônio pagando aluguel.

Sabia que isso ia atrasar meu lado financeiro. Mas quem consegue ser racional o tempo todo? Eu não consigo. Foi uma escolha difícil. Quem não fez as suas? Pergunte para o Morrissey, que tocava com os Smiths.

Quando levei minha noiva até a loja de móveis, para escolher um sofá, vi os olhos dela brilhando. Eu é que não ia estragar o momento, bolando uma estante com blocos de cimento e tábuas aproveitadas de pallets. Está aí uma dica de vídeo para quem ganha dinheiro ensinando o pão-durismo para os desavisados.

Quando nasce uma criança, é aí que o bicho pega. O vira-lata manso vira um leão, para não faltar nada em casa. Se você fizer as contas, você não coloca filhos no mundo. Então, tem horas que a gente simplesmente não deve fazer contas. Dane-se quem prega o contrário.

Se você é pai ou mãe, você voltaria no tempo em que não tinha filhos, para mudar o rumo da sua vida?

Além da casa, outras coisas que custam caro para manter são os meus carros. Quer arranjar briga comigo? Então me peça para vender um deles. Para quê dois carros? Um já basta. Não precisa nem de um. Anda de Uber. Meu, vai tomar banho.

Você acha que não sei que combustível, seguro, IPVA e oficina são drenos no meu orçamento? Mas quem vai me levar para os lugares que desejo conhecer? Um motorista de Uber, que nem torce pelo meu time? Não! Eu quero dirigir. Quero levar minha família junto, ouvindo clássicos do Rock sem que um motorista fique ouvindo nossa conversa.

Numa dessas viagens meu carro enguiçou. Tive que ir para o acostamento. Minha suspeita se confirmou quando chegou o socorro-mecânico: o alternador tinha ido para o espaço. A princípio, fiquei muito chateado, esperando o guincho chegar. Então embarcamos na caminhonete da seguradora e minha filha pequena achou aquilo o máximo.

Trocando umas ideias com o funcionário terceirizado da seguradora, pensei comigo mesmo: “Caramba, não posso reclamar. Estou passeando num domingo e o cara fazendo plantão”. Vamos ver a situação em perspectiva: meu carro estragou e o sujeito ganhou seu dia.

O mecânico que consertou o alternador também ganhou seu dia – talvez sua semana. Gastei 18 cotas do meu fundo imobiliário favorito para arrumar o veículo. Ou seja: deixei de comprar as 18 cotas, que até o fim dos tempos deixarão de colocar cerca de R$ 195 no meu bolso, a cada ano. Quase dois mangos por década e a gente nem considerou os juros compostos, para o remorso não aumentar.
E daí? Terei que trabalhar ainda mais para repor essa perda.

Fora que, para buscar o carro arrumado, tive que me ausentar do escritório. Se não tivesse carro, isso não teria acontecido. Então, não teria visitado meus pais fora de hora, pois eles moram perto da oficina. Faça contas para tudo e veja o que fará falta lá na frente. Não estou me referindo ao dinheiro.

Por vezes, penso nessas coisas tomando banho. É por isso que não conto o tempo sobre o ralo. Quanto pode render uma boa ideia concebida durante uma chuveirada quente? Muito mais do que a pretensa economia de um banho de dois minutos, conforme a youtuber recomenda.

Sinceramente? Se você trabalha doze horas por dia ou pega ônibus, trem e metrô para ir e voltar do trabalho, você merece um banho de cinco minutos. Dez minutos, que seja. Aceite tomar banhos de dois minutos e vão pedir para você tomar banho dia sim e dia não.

É a mesma história de acordar às cinco da manhã. Se você não pega ônibus, trem e metrô para ir trabalhar, você não precisa acordar tão cedo. Ou acorde, se o seu relógio biológico assim permitir. Aceitar isso como regra imposta não me parece algo inteligente.

Veja bem, não quero arranjar treta com esses youtubers. Quem sou eu perto deles, não é mesmo? Eles falam coisas que muita gente precisa ouvir. Só estou defendendo que devemos ter senso crítico. Questionar antes de assimilar – ou não – o conteúdo.

Então, se disserem para você fazer caminhadas diárias de 40 minutos, sem conversar com seu colega, pois isso prejudica o ritmo da respiração, vai lá e converse com ele. Será mais saudável. Ou caminhe sozinho, para não entrar em conflito.

Se pedirem para você reduzir o consumo de carboidratos, não deixe de comer pizza de vez em quando. O que pesa mais: perder uns quilos ou perder contato com aqueles amigos que você só vê numa pizzaria? Será que dá para dar umas boas risadas comendo alface e tomando água? Quem consegue fazer isso que me ensine, por favor.

Gosto de aprender. O tempo todo. Mas não faço isso dependendo apenas de vídeos no YouTube. A gente aprende com os clientes, com os chefes, com os patrões e inclusive com os estagiários da vida. Aprendemos batendo perna na rua, vendo bons filmes, boas peças de teatro e, sobretudo, lendo bons livros – os chamados clássicos.

Ou você pensa que Benjamin Graham, autor de “O investidor inteligente”, seria popular no YouTube? Se Van Gogh vivesse entre nós, ele seria ainda mais depressivo com essa história de mídias sociais. Aposto um alternador de Alfa Romeo nisso.

O que vejo nas mídias sociais, principalmente na área onde trabalho, são pessoas ganhando fama – e dinheiro – construindo personagens. Isso fica claro pelo uso de apelidos. Estas pessoas, de certo modo, acabam se tornando escravas das próprias personagens. Um vídeo novo por dia, uma mania nova por dia, um mandamento novo por dia.

Então, se tem algo que é mais caro do que uma casa ou um carro para manter, é a forja de uma personagem.

Vender felicidade custa caro.



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