domingo, 13 de maio de 2018

O dono do pé de mamão

O dono do pé de mamão - por Jean Tosetto

Domingo, Dia das Mães. Resolvemos almoçar fora. O namorado da minha afilhada sugeriu um pequeno restaurante num antigo bairro residencial perto do centro da cidade, que aos poucos vai se tornando uma região comercial. As casas que ainda não se converteram em escritórios são postas para alugar, de modo que pouca gente reside ali há muitos anos.

Apesar de chegarmos cedo, o lugar já estava lotado. Na praça gramada, em frente à casa reformada para servir comida, colocaram algumas cadeiras de plástico sob as copas de algumas árvores. A espera é atenuada quando um garçom passa oferecendo brusquetas. O pessoal da cantina é gentil. Gentil e inteligente.

Logo um pé de mamão carregado chama a atenção da minha mãe, na casa ao lado. Ela também tem um pé de mamão na chácara. Começo a observar o imóvel e passo o meu relatório para a rodinha:

- Quem mora nessa casa não é inquilino, são os próprios donos. Vejam o jardim bem cuidado e a calçada varrida. As janelas e a grade do portão não tem sinal de ferrugem, embora seja uma construção antiga. Esta casa deve ser de alguém de idade, que já teve a chance de vendê-la, mas se apegou ao lugar.

E continuei:

- Eles devem ter se arrependido profundamente de não ter saído antes, depois que abriram esse restaurante. Vejam aquele gordinho folgado, sentado na mureta deles, tomando cerveja. O dono dessa casa deve estar com muita raiva. Reparem na guia rebaixada na frente da garagem, pintada de amarelo desbotado. Com certeza já estacionaram carros várias vezes ali, interrompendo a passagem.

Minha afilhada, abraçada ao namorado, perguntou:

- Como você sabe disso? Você conhece eles?

- Não. Não conheço. Estou apenas deduzindo. E digo mais: o dono dessa casa deve ser um senhor de idade, metódico e disciplinado.

Então uma porta se abriu. Surge um homem de cabelos brancos bem cortados, penteados para o lado, feito um galã dos anos dourados. Ele é meio corcunda, usa camisa social e suspensório. A barra da calça mostra suas canelas finas protegidas por meias escuras, sobre um par de sapatos de couro marrom.

Ele finge que vai cuidar de suas flores. Fica olhando para elas atrás de seus óculos de aviador, com lentes verdes escurecidas que escondem suas sobrancelhas apertando o topo do nariz. Ele se abaixa para cheirar um botão de rosas e, com o canto do olho, avista aquele gordinho folgado colocando uma garrafa de cerveja sobre o cavalete da entrada de água.

- Vejam só: ele está espumando de raiva, mas está se controlando.

Ninguém me responde. Todos compraram o bilhete do teatro para continuar assistindo à cena. O senhor envolve um botão de rosas brancas na palma da sua mão direita e estraçalha as pétalas, que caem esmagadas sobre as lajotas de cerâmica. Foi o jeito que ele encontrou para extravasar sua tensão.

Em seguida saiu uma senhora da casa. Seus cabelos estão pintados de um castanho avermelhado que certamente ela nunca ostentou na juventude. Ainda assim, aqueles cabelos lhe conferiam um porte elegante, emoldurado por um vestido longo de estampa abstrata, sem demarcar sua cintura.

Os dois não trocam uma palavra. Por isso mesmo deu para entender tudo o que eles conversaram através dos gestos. Ela se ajeita num banco de ripas de madeira com encosto arredondado e apenas olha para ele, como quem diz: "sente-se comigo, acalme-se."

Ele faz a vontade dela. Fica com seus braços esticados e apoiados no assento, de modo que sua cabeça quase afunda entre seus ombros. Olhando para o chão, com a face inclinada, ele responde mentalmente: "sei que não adianta ficar bravo, não vai resolver nada, mas será que essa gente não se toca?"

Meu pai me pergunta a razão de tanto ficar observando aquela casa. Explico a situação em poucas palavras. Um homem sentado ao lado, ouvindo tudo que conversávamos, revela que mora naquele bairro desde criança. Ele conhece o senhor da casa com o pé de mamão:

- É um militar aposentado. Deve ter quase cem anos de idade.

Subitamente um garçom grita da porta do restaurante:

- Mesa para nove!

Então, fomos saciar nossa fome. Mas não saciamos a curiosidade.

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2 comentários:

  1. Sensacional! Mr. Sherlock Holmes diria: "elementar, meu caro Tosetto"

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    1. Caro Padilha, segue um trecho de um artigo que escrevi para a Suno Research, mesclando conceitos de investimento e investigação:

      "Sherlock Holmes é o detetive mais famoso da literatura policial. Seu criador era formado em Medicina e baseou parte da sua personalidade na figura de um de seus professores, o Doutor Joseph Bell, um cirurgião que era capaz de relatar a profissão, o país de origem e até os vícios ocultos de um estranho observado na rua, em função de seu modo de se vestir, seu jeito de caminhar, seus gestos e suas expressões faciais.

      A impressionante capacidade de tirar conclusões a partir de observações de pequenos detalhes emprestou a Holmes a fama de ser um mestre da intuição e da dedução. Porém, de acordo com Doyle, seu método intelectual era baseado no raciocínio abdutivo. A abdução, diferentemente da indução e da dedução, é uma lógica filosófica usada para estabelecer hipóteses científicas através de relações de causalidades."

      Link para o texto completo:
      https://www.sunoresearch.com.br/artigos/todo-investidor-de-valor-e-tambem-um-investigador/

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