terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Memórias animadas

O carrinho do Corredor X ao lado do bólido do Speed Racer.
O carrinho do Corredor X ao lado do bólido do Speed Racer.

Há alguns dias levei a minha filha, de quatro anos, para assistir um desenho animado no cinema. "Desenho animado" é um termo anacrônico para definir os novos filmes de animação feitos a partir de computadores: "O Touro Ferdinando", apesar de caricaturado, é feito com técnicas de realidade virtual.

Seus produtores conseguiram representar uma vila no interior da Espanha com notável verossimilhança. As luzes e sombras, a vegetação, as construções vernaculares: tudo nos levava a crer que estávamos realmente na Península Ibérica. Então os touros e cavalos começam uma disputa de rap americano, e todo o encanto da história desaparece.

Por isso, meu desenho animado favorito ainda é "Speed Racer" - uma produção japonesa dos anos de 1960 que poderia ser considerada rudimentar atualmente, se não fosse pela trilha sonora refinada e pelo apelo familiar que supera as disputas automobilísticas.

O personagem principal de "Speed Racer" não é apenas um piloto de corridas: ele tem pai, mãe, uma namorada, um irmão caçula e até um animal de estimação, além de um grande amigo. Porém, ele sente falta de seu irmão mais velho, que brigou com o pai há alguns anos e desapareceu.

Ninguém na história do desenho sabe, mas o irmão de Speed, Rex Racer, é na verdade o Corredor X, que corre mascarado e também trabalha para o serviço secreto. Ele está sempre monitorando o irmão do meio e, apesar de não ter o melhor carro, até o Speed reconhece que o Corredor X é mais piloto.

Quando era criança, não entendia o motivo do Corredor X nunca dizer para o Speed Racer que ele era seu irmão. Eu nunca faria isso na vida real. Até hoje não entendo. O Corredor X apenas falava para o Speed tomar cuidado, pois a próxima corrida seria muito perigosa.

Talvez, por isso, tenha crescido sem me livrar do encanto dos desenhos "toscos" do Speed Racer. Já adulto, com responsabilidades nas costas, comprei as miniaturas dos carros, que na minha época de garoto não tinham para vender no Brasil. Adquiri até um autorama, que agora monto no tapete da sala para brincar com minha filha.

Apesar de não ser o Toretto da série "Velozes e Furiosos", o Tosetto aqui gosta de guiar carros. Como ainda tenho cabelo, sou bem mais suave e comedido na direção.

As vezes estou dirigindo meu conversível sozinho, pelas estradas vicinais. Gosto de imaginar que uma hora meu irmão mais velho vai emparelhar comigo e pedir para reduzir o ritmo. Isso nunca vai acontecer.

Felizmente guardo boas memórias do meu irmão mais velho. Ele sempre foi bom comigo. Quando brincávamos com nossos carrinhos de rolimã na Rua Maria das Dores em Paulínia, ele sempre deixava eu ser o Speed Racer. Meu irmão era o Corredor X, desaparecido há alguns anos. E como a gente não se conforma com isso, seguimos em frente.

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sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

Para se proteger das baleias nade com os tubarões

"Jonas e a Baleia" (1621) - pintura de Pieter Lastman (1583-1633) exposta no Museum Kunstpalast em Düsseldorf, Alemanha.
"Jonas e a Baleia" (1621) - pintura de Pieter Lastman (1583-1633) exposta no Museum Kunstpalast em Düsseldorf, Alemanha.

Por Jean Tosetto *

Quando pensamos numa baleia e que ela é um dos maiores seres vivos do planeta, podemos imaginar que ela se alimenta de grandes peixes, e que trava duelos homéricos com outros gigantes do mar. Ao contrário. As baleias se alimentam de peixes pequenos, que facilitam a sua vida nadando em cardumes. Mais do que peixinhos, as baleias gostam de krill, uma espécie que lembra o camarão. Este crustáceo é tão pequeno que caberiam vários na palma da sua mão.

Os krills vivem e morrem em grupo. Seus aglomerados podem atingir até 30 mil indivíduos por metro cúbico. Talvez eles pensem instintivamente que deste modo estão mais protegidos. Mas eis que vem a baleia, abrindo sua bocarra e arrastando tudo que vem pela frente: água, peixes, fitoplânctons, zooplânctons, krills. Feito o banquete, a baleia descarta o que não interessa e fica com os peixes e krills.

Posto isso, tenho uma péssima notícia para você. Não, você não é um peixe-espada, também não é uma arraia. Você é um peixinho. Se servir de consolo, eu também sou.

Diariamente nossa espécie é engolida por baleias. O sistema único de saúde nos massacra. A previdência social também. Você nada em conjunto, pensando que assim está protegido, mas lá vem a declaração anual de ajuste fiscal, feito uma baleia jubarte. As orcas assassinas atendem pela corrupção nas esferas governamentais – essas pegam até os peixes grandes.

Alguns peixinhos, mais espertos, migram para o mercado de capitais. Mal sabem eles que o mercado também é uma baleia. Nadando em cardumes de sardinhas, elas compram nos momentos de euforia, se apavorando nos ciclos de baixa. E a baleia do mercado vem recolhendo todas as sardinhas que ficaram na reta.

Se existe um bicho que as baleias respeitam são os tubarões. A gente pode achar que os tubarões são uns malvados, mas eles são os reis da cadeia alimentar marítima. Sem eles, todo o ecossistema ficaria desequilibrado. As baleias não são bobas de provocarem os tubarões.

No mercado de capitais, os tubarões são as grandes empresas. Dizem que o capitalismo é selvagem por causa delas. Mas sem elas, o sistema financeiro desabaria. Até as baleias morreriam se não fossem os tubarões para colocar ordem no fundo do mar.

E agora eu lhe trago a boa notícia. Você, mesmo sendo um peixe pequeno - como eu - pode fazer uma parceria com os tubarões. Basta que você atue como um bodião-limpador. Os bodiões que gostam de uma limpeza não ultrapassam 10 centímetros de comprimento, mas os tubarões adoram ter eles por perto.

Os bodiões limpam as barbatanas dos tubarões, deixando-os mais ágeis. Estes peixinhos passeiam por suas mandíbulas e se alimentam dos restos de comida, que os tubarões não conseguem engolir. Os bodiões das bolsas de valores são os acionistas minoritários, que se alimentam dos dividendos oriundos dos lucros obtidos pelos tubarões.

Você pode pensar: “que coisa mais humilhante, viver dos restos que os outros caçam”. Porém, se você pudesse indagar um bodião sobre isso, ele responderia:

- Eu nado com os tubarões: as baleias passam longe de mim. 

Isto está longe de ser humilhante. Na verdade este é um comportamento muito inteligente.

Se, por um lado, é preciso ter humildade para reconhecer que somos pequenos, ainda assim podemos nos proteger neste mundo cujas regras nós não criamos. Ainda podemos escolher entre agir como sardinha ou bodião.

As empresas auferem lucros. Isto é absolutamente legítimo. Parte desses lucros cabe ao pequeno acionista, que ajuda a manter a empresa em ordem. Se não fosse assim, ela não abriria seu capital e espantaria os bodiões. Logo ficaria repleta de parasitas que se alimentam de seus lucros não digeridos, perderia força, e seria presa fácil para as baleias.

Existe uma classe de executivos que é contra a distribuição de dividendos. Eles preferem bonificações gordas que prejudicam a gestão do negócio. Os tubarões mais espertos não entregam suas barbatanas para gente assim.

O que mais gosto na Suno Research, é que ela me ensina a nadar com os tubarões. Confesso que já tive bronca deles, mas aprendi que são eles que podem nos proteger.

* Publicado originalmente no grupo da Suno Research no Facebook em 24 de novembro de 2017. Jean Tosetto é coautor do Guia Suno Dividendos, livro escrito em parceria com Tiago Reis e lançado em 08 de dezembro de 2017.




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terça-feira, 2 de janeiro de 2018

A lasanha com camadas de lembranças

A menina brinca com o pai fazendo lasanha.
A menina brinca com o pai fazendo lasanha.

Chega o fim da ano e a gente começa a remexer nas gavetas, para jogar fora os papéis velhos deixando espaço para novas contas e boletos de pagamento. No meio das camadas de documentos surge um livro de bolso com receitas da cozinha mediterrânea.

- Taí: em 2018 vou aprender a cozinhar! - Prometo para minha esposa.

Montar pizzas ou fazer macarrão e ovo no forno de microondas não valem para o currículo de um mestre cuca. Ter cozinhado feijão e arroz para o meu pai, por uma semana, há não sei quantos anos (quando minha mãe viajou com as irmãs para um casamento na roça), também não.

Era a última manhã de 2017. Então me ocorreu: "Não preciso esperar o ano que vem para começar a cozinhar. Farei isso ainda neste ano."

Folheei o livreto e encontrei uma receita relativamente fácil de fazer: a Lasanha Voadora.

Decorei os ingredientes e fui para o supermercado, pensando que ele estaria vazio. Ledo engano. O estacionamento estava lotado. Parece que todo mundo deixou para comprar a ceia de fim de ano na última hora.

Vou para o açougue e procuro por bandejas de peito de frango, que depois preciso cortar ao meio para deixá-los na forma de bifes a serem batidos com um martelo de madeira.

Empurrando o carrinho, vejo o fotógrafo com quem brincava na infância, na rua da casa da minha avó, ironicamente na mesma rua daquele mercado:

- Há quanto tempo, hein? Como está seu pai?

- Ele morreu já tem uns dois anos.

- Me desculpe. Não fiquei sabendo. Meus pêsames.

Ele compreendeu. Disse que sentia saudades do meu irmão, quando lhe interrompi:

- Você sabe que ainda me perguntam dele? As vezes me nego a dizer que ele morreu. Uma vez contei que ele tinha ido para a Estância de São Pedro. O sujeito afirmou não conhecer aquela cidade e perguntou se era longe. Respondi que era bem longe.

- Ele está num lugar melhor agora.

- Talvez seu pai esteja tentando ensinar ele a jogar beisebol. Vamos ver se agora ele aprende!

A família do fotógrafo sempre jogou beisebol. Teve gente que acabou até na seleção brasileira.

No setor de frios, separei as bandejas de presunto e queijo. O queijo parmesão, para ralar em pedaços grandes, é caro pra Dedéu. Engraçado que o Dedéu nunca paga pelas coisas, então ele não deveria achar nada caro.

O despachante que cuidava do licenciamento do meu carro surgiu na esquina dos espumantes, que não fazem parte da receita da lasanha, mas são obrigatórios durante o foguetório da passagem de ano.

- Tudo bem? Ouvir dizer que você não é mais despachante.

- Isso já tem uns oito anos, Jean. Agora sou eletricista. Inclusive precisava te procurar. Você é engenheiro, né?

- Não. Eu sou arquiteto. Mas está aqui o meu cartão. Vamos manter contato.

Depois que informatizaram o sistema de licenciamento anual dos automóveis, muitos despachantes perderam receita. Ele se reinventou em outra área. Isso nos diz muita coisa: se reinventar num mundo onde as profissões são tão líquidas quanto os espumantes.

Na seção de hortifrútis escolho as folhas de espinafre, as batatas a serem cortadas em rodelas finas com cascas, os tomates italianos e as cebolas.

A moça do banco, que me atende no caixa da prefeitura, onde faço o protocolo dos meus projetos, me avista:

- Oi Jean! Preciso de uma indicação sua: você conhece um bom fornecedor de esquadrias de alumínio?

Espera aí, ela não fez o projeto comigo, mas quer uma recomendação? Sem problemas. Eu faço, mas com todas as ressalvas. As vezes o outro pisa no tomate e a polpa respinga na gente.

Falta providenciar os limões e a pimenta calabresa, para temperar os bifes de frango. Vejo uma senhora meio de lado. Será que ela era a minha professora da quinta série? Putz, lá se vão trinta anos.

Ela olhou para mim com o mesmo sentimento:

- Eu tenho muito orgulho de ter sido sua professora!

E me abraçou.

- Se eu fosse presidente do Brasil, mandava triplicar os salários das professoras, só para começar!

O corretor de imóveis aposentado, de quem não lembro o nome, sorriu diante de nós.

Faltava pagar a conta.

A caixa passava os ingredientes para o empacotador enquanto eu me indagava: "Caramba, sempre venho nesse mercado e nunca vejo ninguém conhecido. Hoje o pessoal antigo da cidade resolveu fazer compras".

Se pudesse, continuaria caminhando entre aquelas gôndolas, encontrando mais gente querida. Mas a receita da lasanha já estava completa.

Saboreei ela antes mesmo de levá-la ao forno.

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Um relance de felicidade

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