A menina brinca com o pai fazendo lasanha. |
Chega o fim da ano e a gente começa a remexer nas gavetas, para jogar fora os papéis velhos deixando espaço para novas contas e boletos de pagamento. No meio das camadas de documentos surge um livro de bolso com receitas da cozinha mediterrânea.
- Taí: em 2018 vou aprender a cozinhar! - Prometo para minha esposa.
Montar pizzas ou fazer macarrão e ovo no forno de microondas não valem para o currículo de um mestre cuca. Ter cozinhado feijão e arroz para o meu pai, por uma semana, há não sei quantos anos (quando minha mãe viajou com as irmãs para um casamento na roça), também não.
Era a última manhã de 2017. Então me ocorreu: "Não preciso esperar o ano que vem para começar a cozinhar. Farei isso ainda neste ano."
Folheei o livreto e encontrei uma receita relativamente fácil de fazer: a Lasanha Voadora.
Decorei os ingredientes e fui para o supermercado, pensando que ele estaria vazio. Ledo engano. O estacionamento estava lotado. Parece que todo mundo deixou para comprar a ceia de fim de ano na última hora.
Vou para o açougue e procuro por bandejas de peito de frango, que depois preciso cortar ao meio para deixá-los na forma de bifes a serem batidos com um martelo de madeira.
Empurrando o carrinho, vejo o fotógrafo com quem brincava na infância, na rua da casa da minha avó, ironicamente na mesma rua daquele mercado:
- Há quanto tempo, hein? Como está seu pai?
- Ele morreu já tem uns dois anos.
- Me desculpe. Não fiquei sabendo. Meus pêsames.
Ele compreendeu. Disse que sentia saudades do meu irmão, quando lhe interrompi:
- Você sabe que ainda me perguntam dele? As vezes me nego a dizer que ele morreu. Uma vez contei que ele tinha ido para a Estância de São Pedro. O sujeito afirmou não conhecer aquela cidade e perguntou se era longe. Respondi que era bem longe.
- Ele está num lugar melhor agora.
- Talvez seu pai esteja tentando ensinar ele a jogar beisebol. Vamos ver se agora ele aprende!
A família do fotógrafo sempre jogou beisebol. Teve gente que acabou até na seleção brasileira.
No setor de frios, separei as bandejas de presunto e queijo. O queijo parmesão, para ralar em pedaços grandes, é caro pra Dedéu. Engraçado que o Dedéu nunca paga pelas coisas, então ele não deveria achar nada caro.
O despachante que cuidava do licenciamento do meu carro surgiu na esquina dos espumantes, que não fazem parte da receita da lasanha, mas são obrigatórios durante o foguetório da passagem de ano.
- Tudo bem? Ouvir dizer que você não é mais despachante.
- Isso já tem uns oito anos, Jean. Agora sou eletricista. Inclusive precisava te procurar. Você é engenheiro, né?
- Não. Eu sou arquiteto. Mas está aqui o meu cartão. Vamos manter contato.
Depois que informatizaram o sistema de licenciamento anual dos automóveis, muitos despachantes perderam receita. Ele se reinventou em outra área. Isso nos diz muita coisa: se reinventar num mundo onde as profissões são tão líquidas quanto os espumantes.
Na seção de hortifrútis escolho as folhas de espinafre, as batatas a serem cortadas em rodelas finas com cascas, os tomates italianos e as cebolas.
A moça do banco, que me atende no caixa da prefeitura, onde faço o protocolo dos meus projetos, me avista:
- Oi Jean! Preciso de uma indicação sua: você conhece um bom fornecedor de esquadrias de alumínio?
Espera aí, ela não fez o projeto comigo, mas quer uma recomendação? Sem problemas. Eu faço, mas com todas as ressalvas. As vezes o outro pisa no tomate e a polpa respinga na gente.
Falta providenciar os limões e a pimenta calabresa, para temperar os bifes de frango. Vejo uma senhora meio de lado. Será que ela era a minha professora da quinta série? Putz, lá se vão trinta anos.
Ela olhou para mim com o mesmo sentimento:
- Eu tenho muito orgulho de ter sido sua professora!
E me abraçou.
- Se eu fosse presidente do Brasil, mandava triplicar os salários das professoras, só para começar!
O corretor de imóveis aposentado, de quem não lembro o nome, sorriu diante de nós.
Faltava pagar a conta.
A caixa passava os ingredientes para o empacotador enquanto eu me indagava: "Caramba, sempre venho nesse mercado e nunca vejo ninguém conhecido. Hoje o pessoal antigo da cidade resolveu fazer compras".
Se pudesse, continuaria caminhando entre aquelas gôndolas, encontrando mais gente querida. Mas a receita da lasanha já estava completa.
Saboreei ela antes mesmo de levá-la ao forno.
Veja também:
Confesso, amigo,que ao final da leitura já estava com "água na boca".A degustação da lasanha fica para outra ocasião!!!!
ResponderExcluirGrande abraço!!
E que um dia,alguém remexendo velhos papéis na véspera de um novo ano possa encontrar a receita da paz entre os homens!!!!
Caro Custódio, deixa eu ficar bom nesse negócio de lasanha. Enquanto isso, vou desatando uns nós por aqui. Um dia vamos almoçar juntos, com nossas famílias. Sem agenda, combinado?
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