sábado, 23 de julho de 2016

O que vem fácil vai fácil

O Monumento Los Dedos foi erguido pelo artista plástico chileno Mario Irrazábal em 1982, na Parada 1 da Praia Brava de Punta Del Este, no Uruguai. Fotografei o local em 1997.
O Monumento Los Dedos foi erguido pelo artista plástico chileno Mario Irrazábal em 1982, na Parada 1 da Praia Brava de Punta Del Este, no Uruguai. Fotografei o local em 1997.

O ano de 1997 foi muito difícil para a nossa família. Estávamos vivendo um luto pesado, com o qual ainda não aprendi a lidar plenamente. O que me ajudou muito na época foi uma viagem que aceitei fazer com dois tios, o Gijo e o Dário, para o Uruguai.

O Dário é marceneiro e gosta de fazer móveis refinados, com madeira maciça e ferragens especiais. Naqueles dias ele inventou de elaborar uma cristaleira com puxadores de bronze, que ele encomendou numa fundição em Montevideo. Como eram artefatos pesados demais, a desculpa para o convite era que eu ajudaria a transportar os objetos no avião. As passagens foram presentes do Gijo.

Desembarcamos no pais na véspera da Sexta-feira Santa, sem reservas em hotel. Batemos pernas pelas ruas da capital até encontrar um pouso barato no centro histórico da cidade, que tinha um elevador de portas pantográficas fantasmagóricas. O casal Manoela e Carlos se hospedou por lá também, em 1969. Ao menos era que o que estava rabiscado na porta do armário.

Na primeira noite fomos numa pizzeria e escolhemos um calzone. Estava tão salgado que a sede veio implacável de madrugada. E tome bater pernas novamente, até encontrar um bar que nos servisse uma Coca-Cola gelada, que só perdeu em sabor para o refrigerante de pomelo que experimentamos no Mercado do Porto, no dia seguinte.

Naqueles dias os cinemas estavam exibindo as cópias restauradas da série "Stars Wars" - "Guerra nas Estrelas" para os brasileiros e "La Guerra De Las Galaxias" para os uruguaios. Curiosamente a sala que visitamos tinha a inclinação do piso invertida, com a tela no lugar mais alto do recinto.

Pegamos um ônibus para Punta Del Este e tive a oportunidade de conhecer a Casapueblo, construída aos poucos numa encosta íngreme diante do mar, pelo arquiteto uruguaio Carlos Páez Vilaró, falecido em 24 de fevereiro de 2014, no dia em que completei 38 anos.

Caminhávamos o dia inteiro. O Tio Dário tinha a audácia de usar calças sociais com chinelos Havaianas, num tempo em que esse tipo de sandália não era algo cult, mas apenas um ADP - minha sigla para "Atestado De Pobreza". Comentei algo do tipo com ele, que me respondeu:

- Estes chinelos tem mais quilometragem do que você, na sua vida inteira.

Ele de chinelos, eu de mocassim com meias brancas, e o Tio Gijo com seu indefectível 752 da Vulcabras, ingressamos num cassino. Cristão protestante devoto, não quis apostar em nada e fiquei vendo eles perderem as fichas num caça-niqueis, até que eles me pediram para tentar um vez.

As moedas começaram a cair em cascata. Enchemos o pote, literalmente. Meus tios me encorajaram a continuar apostando e, na tentação, fui perdendo tudo de novo, até que resolvi parar. O que sobrou foi suficiente para comprar um relógio suíço da marca Swatch, na própria loja do cassino.

Era um lindo relógio: caixa cromada, pulseira de couro, visor analógico azul marinho, bem ao estilo de James Bond. Por falar em 007, tenho certeza que vi o ator Sean Connery caminhando pelas ramblas em Montevideo.

Parei numa vitrine e reparei no senhor usando chapéu de pescador, com seu metro e noventa de altura e ombros largos, pulsos idem. Seus óculos não escondiam suas sobrancelhas pontudas e seu cavanhaque grisalho não escondia os vincos nas bochechas. Era Sean Connery, sem dúvida. Apenas nunca pensei que ele combinasse bermuda com camisa de mangas compridas e botas de montanhista.

Ele olhou para mim e sua expressão facial parecia me dizer:

- OK, você me reconheceu. Por favor não faça alarde.

Usei minha fleuma para tranquilizá-lo. Eu estava com um relógio suíço no pulso esquerdo. Pressionei meus lábios levemente e abaixei a cabeça num gesto afirmativo. Gesto que ele repetiu.

Voltei para casa com o espírito revigorado. Aquela manhã de Domingo de Páscoa em terras austrais foi compensadora. Decidi que queria viver e me tornar um grande arquiteto. Comecei a levar a faculdade com mais afinco.

Alguns anos se passaram. Já formado aceitei outro convite. Um amigo ia ao shopping-center em Campinas com a caminhonete D-20 de seu pai. Fomos passear um pouco. Já era noite. Na hora de ir embora, um Gol nos fechou na alça de acesso para a rodovia. Dois homens armados desceram do carro. Um ficou no volante.

Um dos assaltantes me tirou da caminhonete e me levou para o acostamento. Era jovem como eu, bem vestido de sobretudo e loiro, de olhos claros. O playboyzinho encostou uma pistola na minha testa. Tive tempo de ver as ranhuras em espiral do cano da arma. Levantei os braços e pensei:

- Então é isso? A vida acaba assim? Será que vou ver meu irmão de novo, daqui a pouco? Certo, elemento. Atire logo!

Ele não atirou. Apenas pegou meu relógio suíço, já com a pulseira cromada e reluzente no meu pulso esquerdo. Lembrei do cassino de Punta Del Este e da fleuma de Sean Connery em seus filmes de James Bond. Era como se ele me ensinasse:

- Easy come, easy go.

Fiquei sem o relógio e meu amigo sem a D-20, mas estamos vivos até hoje. O prefeito Toninho, de Campinas, morreria em condições semelhantes em setembro de 2001, naquele lugar ermo, onde hoje há um monumento em sua homenagem: a escultura dele soltando uma pipa. O que me leva a outro monumento: a mão saindo da areia na praia de Punta Del Este. Ela vaticina que a vida nos escorre pelos dedos, inexoravelmente.

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3 comentários:

  1. Respostas
    1. Se o Bom Pai permitir, vem mais lembranças pingando por aqui.

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  2. Grato, Ênio, pela gentileza: http://www.eniopadilha.com.br/artigo/8291/o-que-vem-fcil-vai-fcil

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