Eu devia ter uns três anos de idade. Estava no banco de trás do Fusca branco dos meus pais. Meu pai estava ao volante. Minha mãe ao lado, segurava uma câmera de filme Super 8. Meu irmão mais velho estava ao meu lado esquerdo, sem cinto de segurança, com apenas seis ou sete anos. Minha irmã caçula do outro lado. Eu era o filho do meio, então sentava no meio do banco traseiro.1979? Acredito que sim.
O rádio embutido no painel de metal era preto, com dois grandes botões e umas teclas sob o dial. A gente estava chegando em Campinas, passando pela fábrica de biscoitos da Triunfo. Quando ouço a palavra "Campinas", me vem a imagem desse radinho, que estava tocando uma música estranha, que eu não entendia nada.
Anos depois descobri que se tratava de "Mania de Você", de Rita Lee. A música tocava várias vezes ao dia. No consultório da dentista, uma morena alta e magra, havia uma caixa de madeira com dominós, na sala de espera. Eu brincava com eles como se fossem carrinhos num estacionamento. No som ambiente as palavras e a melodia de Rita Lee eram gravadas em minha cuca, no alto de um prédio da Avenida Francisco Glicério, perto da Catedral de Campinas.
A dentista era bonita e muito simpática. Foi atenciosa comigo. Mais do que isso: carinhosa. Lembro do bocão aberto, de olhar para o teto e para o nada, ao mesmo tempo. "Nada melhor do que não fazer nada..." - Rita Lee entrou na minha cabeça desde cedo, pela minha boca e pelos meus ouvidos. Ela tinha a idade do meu pai. Apenas três dias de diferença.
Meu pai, porém, levou uma vida completamente diferente. Enquanto Rita Lee e os Mutantes passeavam de Buggy, meu pai servia o exército. Enquanto Rita Lee se separava dos Mutantes, meu pai se casava com minha mãe. Enquanto Rita Lee fazia sucesso com a banda Tutti Frutti, meu pai trabalhava no turno da noite, numa fábrica. Minha mãe fazia tudo em casa.
Um dia, já na faculdade, comprei um disco dos Mutantes. Mostrei para o meu pai, que disse: "Esses playboyzinhos copiavam os Beatles". Sim, mas eram tão bom quanto eles.
Como sempre, nunca estamos preparados para um partida. Nunca cheguei perto da Rita Lee, mas seu passamento reavivou lembranças que estavam sendo apagadas em minha mente. O que me assusta, porém, é que a geração dos meus pais começou a ir embora. Para sempre. E nós, que ficaremos por aqui por mais algum tempo, o que vamos fazer? Vamos desafiar as convenções da sociedade? Vamos aguentar o tranco de trabalhar duro para pagar as contas e criar nossos filhos?
Sinto que a geração anterior foi muito mais adulta, rebelde, resistente e intensa do que a nossa. Isso me angustia.
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