segunda-feira, 9 de abril de 2018

Qual era o plano de negócios de Bach?

Detalhe do retrato de Bach aos 61 anos de idade, pintado por Elias Gottlob Haussmann em 1748, atualmente parte do acervo histórico do compositor em Leipzig, na Alemanha.
Detalhe do retrato de Bach aos 61 anos de idade, pintado por Elias Gottlob Haussmann em 1748, atualmente parte do acervo histórico do compositor em Leipzig, na Alemanha.

As redes sociais espalham feito gripe espanhola o link de reportagem da BBC sobre a palestra da cantora Anitta na Universidade de Harvard nos Estados Unidos, em evento corporativo organizado em parceria com o MIT. Ela não foi lá propriamente para falar de sua música, mas de seu plano de negócios, ofuscando, segundo o relato, a presença do CEO da maior cervejaria do mundo.

Tudo é apresentado de modo a chancelar o talento empresarial da jovem, relevando o seu lado artístico, pois gosto não se discute, embora pareça que todo mundo goste de uma boa história sobre como ganhar dinheiro. No entanto, a mistura de Anitta com Ambev, Harvard, MIT e BBC não me impressiona por uma simples razão: o produto artístico, para mim, ainda importa.

Classe média baixa - quase favela, mas sem apelar.

Os Beatles eram apenas quatro rapazes da classe operária de Liverpool, se apresentando na zona do meretrício de Hamburgo, na Alemanha, quando o empresário Brian Epstein viu algum valor neles. Ele trocou as jaquetas de couro surrado dos músicos por ternos bem cortados, lhe escovou os cabelos e comprou boa parte da prensagem do primeiro single oficial da banda, "Love Me Do", para chamar a atenção da crítica musical.

Quando os Beatles começaram a fazer sucesso na Inglaterra, houve quem dissesse que aquilo era uma coisa arranjada. Não era. Os Beatles eram realmente bons, tanto que compunham as próprias músicas. Brian Epstein cuidava de toda a parte comercial e deixava Lennon, McCartney, Harrison e Starr focados apenas no que eram melhores.

A separação dos Beatles em 1970 não foi por culpa da Yoko Ono. A banda começou a ruir quando Brian Epstein morreu em 1967 e os Beatles resolveram que seriam os empresários deles mesmos. Fundaram a Apple para produzir os próprios discos e incentivar outros artistas. Não deu certo. Em pouquíssimo tempo a boutique deles em Londres quebrou. Não teve liquidação: as roupas foram doadas no último dia de funcionamento da loja.

Então eles arranjaram outro empresário, Allen Klein. Mas já era tarde para evitar o desmanche do grupo. A Apple só se recuperou, anos depois, pois o legado musical dos Beatles é tão grande que permitiu o turnaround nos negócios. Hoje, a marca dos Beatles segue sendo uma das mais lucrativas da música popular.


Sorte semelhante não teve Johann Sebastian Bach (1685-1750). 

Ele foi compositor, regente, mestre de capela, professor, cravista, organista, violinista e violista. Trabalhava para a Igreja Luterana da Alemanha, tendo percorrido várias cidades com a missão de organizar coros, ensinar os mais jovens, compor hinos e, quando sobrava tempo, animava festas de casamento para completar sua renda.

Embora muito talentoso, Bach não era uma celebridade. Compunha com muita frequência, como um jornalista contratado para escrever uma crônica por semana. Quando Bach morreu, foi enterrado numa cova simples. Suas inúmeras partituras foram sendo resgatadas ou descobertas paulatinamente, a ponto de sua genialidade ter sido reconhecida tardiamente. Tanto que tiveram muito trabalho para encontrar seu corpo, para ser transladado até o assoalho do altar da Igreja de São Tomás em Leipzig.

Talvez, se Bach tivesse conhecido alguém como Brian Epstein, sua carreira poderia ter sido diferente, ou talvez nem ter prosseguido. Bach não perseguia a fama ou o dinheiro. Ele poderia ter casado com a filha de um ricaço de sua época, mas recusou: ela era feia.

Ironicamente, se Bach vivesse entre nós, certamente ainda seria um funcionário a serviço de sua igreja. Não seria fonte de matéria para a BBC, pois nunca seria convidado, junto com Ciro Gomes, para palestrar em Harvard. Por essa lógica mercadológica, quantos Bachs estamos deixando de conhecer hoje?


O que podemos aprender com Anitta, Beatles e Bach? 

Que um artista precisa ser artista em tempo integral. Que é muito difícil ser genial nas artes e nos negócios ao mesmo tempo. Que ser apenas genial nas artes não garante retorno financeiro. Que ser apenas genial nos negócios não garante o legado artístico. Que artistas empreendedores precisam de empresários.

Ganhar dinheiro com música ruim não é salvaguarda para atenuarmos o legado musical de Anitta que, a bem da verdade, ainda não gravou qualquer coisa que preste. Anitta, me perdoe por não deixar sua música tocar aqui em casa. Espero que seja feliz e que fique muito rica, a ponto de poder se libertar da lógica atual do mercado, que responde pelo segredo do seu sucesso.

E qual é o segredo de Anitta? É a sua diferença fundamental com Bach.

Bach compunha músicas para agradar Deus. Anitta compõe funks para agradar seus consumidores em potencial. Ela pesquisa o que eles querem ouvir e entrega mastigado numa embalagem ao gosto do cliente. Mais do mesmo. Sem surpresas.


O problema do nosso tempo é que estão tentando matar Deus e, no lugar dele, querem celebrar o culto da mediocridade, onde quem tem uma vida miserável em todos os sentidos se conforta com a mensagem que alguns eleitos pela roda da fortuna passam:

- Você é um zero à esquerda, mas com um plano de negócios, pode chegar lá.

Porém, não avisam que para ficar lá é preciso ter talento. Respondendo a pergunta inicial, Bach não tinha um plano de negócios. Mas ele ainda será lembrado daqui a 250 anos. Que plano de negócios prevê isso?

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