domingo, 18 de fevereiro de 2024

O garçom haitiano

"A pizza foi criada na Itália, mas coube aos brasileiros ter a ousadia de propor variações sobre o tema."
"A pizza foi criada na Itália, mas coube aos brasileiros ter a ousadia de propor variações sobre o tema."

Na sexta-feira de tarde a esposa apareceu na porta do escritório. Estava tentando concluir um texto e, sem ela precisar dizer uma palavra, adivinhei que jantaríamos na pizzaria, naquela noite.

Fomos recepcionados por um rapaz de porte atlético, mas de poucas palavras.

Deixei minha filha fazer o pedido, pois se dependesse de mim, passaríamos a vida escolhendo sempre a pizza marguerita, feita com queijo, molho de tomate e manjericão, evocando as cores da bandeira da Itália.

Schopenhauer já dizia que, para as pessoas de poucos predicados, restava se orgulhar de suas pátrias. Lembrei disso para refrear minha satisfação por ter nascido com sangue italiano e, por isso, não me opus quando a pizza de frango com catupiry foi a eleita da ocasião.

A pizza foi criada na Itália, mas coube aos brasileiros ter a ousadia de propor variações sobre o tema.

Agradeci quando o garçom trouxe o suco de laranja. Quando ele respondeu "de nada", percebi que seu tom de voz e sotaque lembrava o Rincón, jogador da seleção colombiana de futebol que jogou no Palmeiras e no Corinthians há vários anos.

Ao pagar a conta, perguntei se ele era colombiano. Ele respondeu:

- Não, sou haitiano.

- Então você fala francês?

- Sim.

- E tem saudades do Haiti?

- Não. Não tenho.

- Então já se tornou brasileiro?

- Ainda não, preciso provar que sei falar português e levar uns documentos na Polícia Federal.

- Bom, essa história de ser haitiano ou brasileiro é apenas uma convenção entre os homens. O que importa, de verdade, é que somos todos filhos de Deus.

Ao dizer a última frase, apontei o dedo para o céu. Ele olhou para cima e quando baixou a cabeça abriu um sorriso pela primeira vez.

Geralmente falamos certas coisas da boca para fora, mas ao dizer que "somos todos filhos de Deus", veio um sentimento de que realmente era irmão dele.

Ao me levantar da mesa apertamos as mãos, dei um tapa no ombro dele e disse:

- Valeu, garoto!

Ao voltar para o carro, pensei em como seria recomeçar a vida em outro país. Deve ser mais fácil quando você não se agarra a uma bandeira e trata de entregar o melhor de si mesmo para os outros - vai ver é isso que Deus espera que façamos, enquanto vivemos num mundo de fronteiras artificiais.

Veja também:

Sobre a cadência para ler e escrever

Setas Para Lugar Nenhum

Aforismos para a Sabedoria de Vida, por Schopenhauer (Amazon)

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