Máscara com o escudo do Palmeiras: dupla proteção. |
Em primeiro lugar, quero deixar claro que há muitos anos não acredito mais no futebol como um esporte decidido apenas dentro de campo. Em segundo lugar, declaro ser palmeirense em nome de um garoto que foi fanático pelo clube e por causa de parentes e amigos que seguem torcendo pelo Verdão. Em terceiro lugar, dentro do meu ceticismo agnóstico em torno do futebol, trato de comemorar os títulos que o Palestra ganha, porém, quando o time perde, foram apenas os jogadores que perderam. Neste concerto, minha chama pelo escrete esmeraldino se reacende de tempos em tempos, mas nunca apaga.
O Palmeiras me fez sofrer muito na infância. Nasci em 1976. A primeira vez que chorei por causa do time, foi quando ele perdeu a final do Campeonato Paulista para a Inter de Limeira, em 1986. Foi a primeira vez que levei uma bronca de meu pai por causa disso, embora ele também tenha sofrido com o resultado.
No ano seguinte, Zetti era o goleiro. Mais de mil minutos sem levar um gol. Perdemos a semifinal para o São Paulo, num frango antológico do meu ídolo. Um tal de Neto cobrou uma falta de longe e a bola passou entre as pernas do arqueiro, que jogava de camisa azul e meias brancas. É muito complicado para uma criança ver seu herói falhar. Mas é bonito quando ela aprende a perdoar o ser humano. Nisso, o futebol ensina bons valores.
Em 1988, já no Campeonato Brasileiro, Zetti estava no Maracanã quando Bebeto, do Flamengo, lhe quebrou a perna num acidente de trabalho. O atacante Gaúcho entrou no gol e, após o Mengão igualar o placar, a decisão da partida foi para os pênaltis. Epicamente, Gaúcho defendeu duas cobranças e deu a vitória para o Palmeiras, mas o título ficou distante.
Com Leão de treinador em 1989, o Verdão ganhou a Taça dos Invictos no Paulistão daquele ano. Porém, em função de um regulamento esdrúxulo, bastou uma derrota para o Bragantino, por vexaminosos 3 a 0, para ficarmos de fora das finais. Mais um dia de choro. Isso se repetia duas vezes por ano, bem como as broncas de meu pai.
Em 1992, o Palmeiras que aprendi amar por causa do meu pai e do meu avô, acabou. Começou a era da cogestão com a Parmalat, a patrocinadora que revolucionou o futebol no Brasil. O gerente Brunoro montou um timaço comandado por Zinho, Evair e Edmundo, chamando Luxemburgo para segurar as coleiras das feras.
Final do Paulistão de 1993 contra o Corinthians. No primeiro jogo, Viola marca para o Timão e imita o porco na beira do gramado. Mais um ano na fila? O décimo sétimo? Não. Teve lavada de alma na semana seguinte: 4 a 0 para o Palestra. Um dos dias mais felizes da minha vida, por causa da comemoração.
Meu irmão foi dirigindo o Fiat Prêmio do nosso pai. Sentei no batente da janela do passageiro, com os braços para cima, tomando vento no rosto até chegar na avenida central da cidade. Um engarrafamento para dar vazão a uma multidão de palmeirenses. Incontáveis sofredores que saíram do armário para sentir orgulho sem culpa, depois de tantos anos.
Tem jornalista que prega o fim dos campeonatos estaduais. Vão se ferrar, seus vendilhões do esporte bretão, que copiam tudo que os europeus fazem.
Não vi o Palmeiras-Parmalat ser campeão brasileiro de 1993. Só comemorei. Naquele dia aconteceu a festa do casamento do meu irmão, na roça. Não havia televisão por perto. Só um radinho de pilha. Mas foi igualmente inesquecível.
Por uns tempos, a rotina de choros semestrais se inverteu: fomos bicampeões paulistas e brasileiros. Mas eu não era mais criança. O futebol já não tinha tanta graça quando você entra para a faculdade e começa a se interessar por outras coisas. Outras emoções, bem mais intensas.
No meio do caminho, teve a Copa de 1994, nos Estados Unidos, que o Brasil ganhou da Itália nos pênaltis, depois de um 0 a 0 que a crônica esportiva demorou para talhar como um jogo horrível. Mais festa no centro da cidade - um dia depois da minha afilhada nascer. Fui conhecê-la no hospital depois de atravessar o centro da cidade coalhado de palmeirenses se abraçando com corintianos, sãopaulinos, santistas, bugrinos e pontepretanos. Todos bêbados.
O Brasil tinha tudo para repetir a dose em 1998, na Copa da França. Quando saiu o sorteio das chaves e a tabela do certame foi divulgada, comentei na sala de aula que aquele campeonato estava desenhado para o Brasil chegar na final e perder para a própria França. Riram de mim. Não havia celular e redes sociais para registrar eletronicamente aquela previsão que se confirmou em cada detalhe, exceto pelas convulsões do Ronaldo Fenômeno de Marketing, que ainda assim jogou os 90 minutos, em tese, por imposição da Nike, a patrocinadora do uniforme da seleção.
Naquele ponto, parei de acreditar no futebol. Foi uma epifania ao contrário.
Desde então, apenas venho fazendo de conta que o esporte é só esporte, e não um espetáculo televisivo que movimenta (e lava) milhões de dólares a cada temporada, com atletas medianos recebendo salários astronômicos repartidos com empresários, advogados e assessores de imprensa, com um bando de espertos falando obviedades em mesas redondas e fazendo merchandising, promovendo polêmicas vazias e personagens vazios.
Então, o Palmeiras resolve avançar na Taça Libertadores da América e nos vemos forçados a torcer pelo time, pois a afilhada que perdeu os pais precocemente já tem capacidade de guardar memórias e pensamos que é bonito falar do Papai Noel para ela. O time progride de fase até chegar à final, com Felipão Scolari no banco, dando patadas na imprensa, e um goleiro torcedor com nome de santo: Marcos.
São Marcos das mãos de ouro e dos pés de barro, que é eleito o melhor jogador das Américas e falha na decisão do Intercontinental contra o Manchester United. São Marcos que é roubado pelo juiz de forma escancarada na final da Libertadores de 2000 contra o Boca Juniors (que não assisti pois estava em outro casamento, na periferia de Piracicaba, invadindo a cozinha do buffet para ouvir as cobranças de pênaltis pelo rádio, para ouvir a banda do baile tocar o hino do Corinthians na sequência, para sentar sozinho no meio fio da praça e prometer novamente que nunca mais iria me importar com o futebol).
São Marcos que pega tudo na Copa de 2002. A Copa que o Rivaldo serviu de bandeja para o Ronaldo Fenômeno de Marketing se consagrar. São Marcos que afunda com o Verdão para a segunda divisão e que dá a volta por cima nas narrações empolgantes de Luciano do Valle, contra o Marília, contra o Sport, contra (e com) o Botafogo. São Marcos que merece o nosso respeito.
A Parmalat foi embora e o Palmeiras acaba mais uma vez, quando a diretoria decide demolir o Estádio Palestra Itália para dar lugar a uma arena super moderna. Levo minha afilhada no jogo de despedida do velho campo, contra o Boca Juniors, cujos zagueiros dão carrinho de cabeça na bola, em pleno amistoso, mas que jogam com o freio de mão puxado contra o Corinthians em outra final de Libertadores. O Boca Juniors da Nike, contra o Corinthians da Nike, que tem um torcedor profissional, o Ronaldo Fenômeno de Marketing da Nike.
A Nike é para o Corinthians o que a Parmalat foi para o Palmeiras. Para o bem a para o mal.
Já não me importei com a segunda queda do Palmeiras para a segunda divisão. Muito menos com a goleada sofrida pelo Brasil contra a Alemanha na Copa de 2014. A Copa dos estádios superfaturados e dos elefantes brancos subaproveitados. Tudo chancelado pela FIFA, que se recusa a reconhecer o título mundial do Palmeiras de 1951, cuja taça foi entregue por Jules Rimet, fundador da FIFA.
O Palmeiras de estádio novo e patrocinador novo, volta a ganhar títulos nacionais. O mais triste de todos foi o Brasileirão de 2016, apagado pela tragédia da Chapecoense, que comoveu o mundo. O dinheiro que jorra nos bolsos de jogadores, dirigentes, empresários e jornalistas que fazem merchandising, faltou para o piloto-dono do avião completar o tanque de combustível.
Nem a pane seca de um avião. Nem o incêndio do Ninho do Urubu. Nem a Pandemia do Coronavírus. Nada interrompe o futebol.
Em 2020, voltei a chorar por causa do Palmeiras. Em casa, sozinho, vendo pela TV o Verdão contra seu eterno rival. Dentro do meu ceticismo agnóstico perante o futebol, não torço contra o Corinthians. Tenho amigos corintianos. Minha mãe é corintiana. Mas quando o Patrick de Paula estufou as redes na derradeira cobrança de pênaltis da final do Paulistão (sempre Paulistão) contra o gigante Cássio, tornei-me fã dele e agradeci ao futebol por permitir sua ascensão social. Quis, mesmo, que ele pudesse se tornar um torcedor do Palmeiras e que ficasse no time por muitos anos.
Não deveria deixar o futebol mexer com minhas emoções desse jeito. Então, caí em prantos ao constatar que meu irmão não estava mais na sala. Que não poderíamos mais sair de carro para fazer aquela doce farra de campeões. Que, enquanto jogadores erguiam a taça diante de arquibancadas vazias, havia gente morrendo em UTIs lotadas.
A dose se repetiu na final da Libertadores de 2020, jogada em 2021 contra o Santos no Maracanã. A imprensa carioca e flamenguista se juntou com a imprensa paulista e corintiana para massacrar a qualidade do jogo, como se não estivesse em campo os maiores campeões brasileiros se respeitando mutuamente, sentindo um medo enorme de deixar escapar o título mais importante de suas histórias recentes.
O empate sem gols tinha tudo para se arrastar até a prorrogação. Tudo indicava mais uma decisão por cobrança de pênaltis - o que seria ótimo para o SBT catapultar sua audiência, que há mais de 15 anos não era tão alta. Não é só esporte. É dinheiro. É publicidade. Mas nisso o canal fez um ótimo trabalho. Teo José, como locutor esportivo e promotor do show, é competente e sabe vender emoções.
Esse jogo não era para acontecer. Não neste cenário de guerra. Mas aconteceu e trouxe um pequeno alento para milhões de palmeirenses. Muitos fanáticos, alguns céticos e alguns que aprenderam a praticar o autoengano.
Fiquei com dó do técnico Cuca. Não merecia ser expulso. Fiquei com dó do Santos. Não merecia perder. Então, antes do encerramento do ato, quando as cortinas já estavam baixando para dar lugar ao interlúdio, Rony cruzou na área e Breno subiu no segundo andar para marcar, de cabeça, o gol do título.
Sozinho na sala, soltei um berro. Minha esposa correu para ver o que aconteceu. Sentei minha filha no colo e pedi para ela ver a chuva de papel picado na tela.
- Preste atenção nisso, pois não vai acontecer de novo, tão cedo.
Para todos os efeitos, Papai Noel existe e minha filha será palmeirense.
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