sábado, 26 de janeiro de 2019

Se meu criado-mudo falasse

Preste atenção no que seu criado-mudo tem a dizer.
Preste atenção no que seu criado-mudo tem a dizer.

Uma das primeiras memórias que lembro desta vida é da mamadeira que tomava antes de dormir, com pouco mais de três anos de idade. Sugava o leite morno e achocolatado pelo bico de borracha até criar vácuo. Quando soltava a boca para respirar melhor, o leite espirrava até o fundo da mamadeira, junto com o ar que entrava. Este fundo arredondado tinha um vinco entre vírgulas, que parecia um sorriso que hoje me faz sentir simpatia pela logomarca da Amazon.

Só depois de deixar um dedo de leite na mamadeira conseguia pegar no sono. Logicamente deixei este hábito. Aprendi a escovar os dentes e orar antes de dormir. E alguns anos depois troquei a mamadeira pelos gibis e depois pelos livros. Hoje não consigo dormir sem antes deixar um dedo na brochura de um livro, para terminar de ler no dia seguinte.

Meus livros vão se empilhando sobre o criado-mudo, aquele móvel com algumas gavetas que muita gente tem ao lado da cama. Minhas gavetas guardam algumas revistas de carros antigos, um mapa de Roma desatualizado, uma caixa com fotografias, o carregador do meu telefone celular, meu primeiro livro autografado por amigos no dia do seu lançamento, um relógio de bolso que nunca usei e alguns papéis e contas pagas.

Como é gostoso terminar a leitura de um capítulo de um bom livro, já com os olhos riscados pela areia do sono! É um momento entre a vigília e o estar acordado onde não sabemos exatamente o que é sonho e realidade, quando os pensamentos ordinários do dia dão lugar à queima de fogos que se forma nas telas das pálpebras, sem emitir qualquer ruído.

Certa noite chovia cântaros sobre minha casa. Um estrondo no céu anunciou um raio descendo sem asas pelas paredes do meu quarto. A descarga elétrica iluminou o criado-mudo por trás e ele começou a emitir sons de estática feito um rádio mudando de estação. Subitamente comecei a ouvir uma voz de pato esganiçado, como se fosse um efeito especial de televisão, quando a testemunha de um crime dá uma entrevista no jornal:

"Vaidade de vaidades, diz o pregador, vaidade de vaidades! Tudo é vaidade... Atentei para todas as obras que se fazem debaixo do sol, e eis que tudo era vaidade e aflição de espírito."

Lembrei que li estas passagens embaralhadas no livro bíblico de Eclesiastes.

"A escolha das ações ordinárias para a carteira do investidor defensivo deve ser um assunto relativamente simples. Cada companhia escolhida deve ser grande, conceituada e conservadoramente financiada. Indefinidos como esses adjetivos possam ser, seu sentido geral é claro... Deve haver uma diversificação adequada, porém não excessiva."

Agora o criado-mudo estava citando Benjamin Graham, autor de "O investidor inteligente". Suas frases aparentemente desconexas eram interrompidas por sons de estática e zumbidos de ondas curtas.

"Nunca coma nada que os homens das cavernas não comessem no período paleolítico. Saem alimentos processados, grãos, leguminosas e carboidratos processados e entram hambúrgueres de brontossauros (sem pão), oleaginosas, frutas, hortaliças integrais, peixes frescos e carnes magras."

Belo conselho de David Zinczenko em "Dieta das 8 horas". O que mais o criado-mudo tinha para contar?

"Não sou forte em História Geral e não sabia que, 120 anos atrás, a Suíça era subdesenvolvida e a mortalidade infantil enorme. Portanto, o Brasil tem chances, em um século, de virar primeiro mundo..."

Sua voz começava a fraquejar, pois a descarga elétrica estava se dissipando embaixo do meu estrado (que felizmente era de madeira e me protegeu de qualquer choque), mas pude lembrar que esta afirmação era de Ignácio de Loyola Brandão, reproduzida num livro de crônicas selecionadas que comprei em Campinas.

O último suspiro do criado-mudo, porém, foi de sua própria lavra:

- Traga... mais... livros...

Como dizem que um raio não cai no mesmo lugar duas vezes, a chance do criado-mudo me acordar novamente no meio da noite para fazer revelações relevantes é próxima de zero. Razão pela qual terei que continuar lendo os livros, que não transmitem conhecimento por osmose, salvo em crônicas de realismo fantástico.

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2 comentários:

  1. Respostas
    1. Esse texto veio em minha mente enquanto eu dirigia meu MP Lafer por estradas vicinais. Grato!

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