sábado, 5 de novembro de 2016

Paris é uma festa - e uma aula para escritores

As ferramentas de um jovem escritor em Paris, na década de 1920. (Imagem criada por Jean Tosetto via SketchUp)
As ferramentas de um jovem escritor em Paris, na década de 1920.

Quem se dedica a escrever livros, mesmo que de modo paralelo ao seu ofício principal, cedo ou tarde fará amizade com outros escritores, trocando livros e opiniões a respeito de projetos literários. Se outras afinidades estão em jogo - como apreciar carros esporte - então a liberdade para criticar e aconselhar é maior, na mesma proporção do querer bem ao próximo.

Meu primeiro livro contou a história do MP Lafer - um carro esporte com linhas nostálgicas, claramente inspiradas nos antigos roadsters ingleses. Enviei um exemplar para o jornalista Arnaldo Keller, editor do site AUTOentusiastas. Dele recebi uma cópia da coletânea “Um Corvette na noite e outros contos potentes” - uma leitura escapista que renderia ótimos filmes de aventura.

Certa vez escrevi um artigo rocambolesco sobre a minha experiência de vender livros num encontro de carros antigos em Águas de Lindóia. Do altar da minha autossuficiência como escritor e editor, acreditava que havia produzido boas linhas de entretenimento - de fato recebi bons comentários sobre o texto. Então encaminhei o link para o Keller.

Ele respondeu que um bom amigo não diz apenas o que a gente quer ouvir, mas o que precisamos ouvir. Quando se dá uma bronca em alguém, a melhor tática é assoprar antes do tapa, diferentemente de quando a intenção é golpear de fato. Li que tinha potencial para ser um bom contista, mas que necessitava ser mais conciso e direto no assunto para contar uma história relevante.

A mensagem se encerrou com a recomendação para ler Ernest Hemingway, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1954 que incompreensivelmente tirou a própria vida em 1961, depois de ter servir como voluntário na Primeira Guerra Mundial, ser correspondente de jornal durante a Guerra Civil Espanhola e desfrutar de bons anos em Cuba, antes de Fidel Castro tomar a ilha de assalto.

Os primeiros livros dele que li foram "Ter e não ter" de 1937  e "O velho e o mar" de 1952. Meu costume de ler alguns capítulos por dia, antes de dormir, foi interrompido em ambos, quando adentrei nas madrugadas aprisionado pela narrativa sem fios soltos e brechas para distrações. Pensei comigo: "Caramba, como vou desenvolver estilo próprio depois de ler esse cara?"

E deste modo chegamos em "Paris é uma festa" - um livro póstumo de Hemingway lançado em 1964. Provavelmente foi escrito como uma carta testamento para os herdeiros de sua escola literária, embora o autor deixava claro que revisitaria passagens posteriores de sua vida. Na obra ele relata o primeiro período em que viveu na cidade, na década de 1920, integrando a "Geração Perdida" de jovens escritores que aparentemente se desorientaram depois da Primeira Guerra.

Nas 250 páginas das memórias de Hem - apelido pelo qual era conhecido na época - não há sequer uma linha sobre a Torre Eiffel, a Avenida Champs Elysées e seu Arco do Triunfo. O porte de pugilista e a origem relativamente rude do autor, nascido no estado americano de Illinois, não faziam dele um cafona deslumbrado. Hemingway e sua esposa estavam em Paris, com um filho a tiracolo, pois Ernest queria ser um grande escritor - e os melhores escritores e poetas afluíam para Paris, junto com os pintores de vanguarda.

A Paris retratada por Hem já não existem mais. Era a Paris dos cafés baratos, onde alguém podia sentar horas a fio numa mesa, sorvendo apenas um conhaque. Os bairros pobres e boêmios, pelos quais o autor caminhava para descansar a cabeça, são descritos de forma sucinta - o suficiente para compormos o cenário em nossa mente. Enquanto isso, ele demonstra seu método de trabalho, intercalando períodos de escrita com visitas aos museus, parques e corridas de cavalo.

Hemingway também lia outros autores, desde os clássicos até os desconhecidos de seu tempo. Segundo ele, isso era útil para que a água pudesse minar na sua fonte de inspiração. Experimente tirar água sem parar e fonte secará. Por isso, de acordo com o autor, não se deve ficar debruçado sobre um texto constantemente.

O deleite continua com as idas de Hem aos sebos onde comprava livros baratos, aos restaurantes imundos onde conversava com desocupados; e aos estúdios e apartamentos de amigos escritores, poetas e artistas plásticos - com quem passava horas conversando sobre quadros, livros, traduções, editoras, tipos de encadernação, críticos de literatura e tudo o mais relacionado ao ofício de escrever sob a inspiração de obras de arte, vinho, cerveja e bebidas mais fortes.

O autor fez amizade com uma bibliotecária que, além de livros, lhe emprestava dinheiro. Com o também renomado Scott Fitzgerald, dividiu o cockpit de um Renault descapotado pelas estradas do interior da França, trocando impressões sobre a maneira de escrever os contos que tentavam vender para revistas literárias.

Retratando as estações do ano e sua influência sobre os hábitos dos moradores de Paris, Hem deságua na conclusão de seu primeiro grande sucesso, o romance "O sol também se levanta" - revisado e reescrito previamente numa estação de esqui austríaca para onde o autor fugia com sua família nos invernos.

Quisera ter lido este livro há alguns anos e teria economizado alguns adjetivos em meus textos. Talvez não estivesse preparado para tanto, mas fico feliz em saber que também tenho amigos escritores e também faço minhas caminhadas para espairecer - não pelos parques de Paris, mas pelas calçadas de Paulínia. A relação entre as cidades está na mesma proporção entre o meu esforço e o talento de Ernest Hemingway - só não quero terminar como ele.

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