A câmera acoplada ao drone sobrevoa os laranjais esparramados sobre uma colcha suavemente ondulada de terra fértil no interior paulista. A visão encontra uma costura asfaltada que passa pelo retalhos, até identificar um carro esporte conversível, vermelho, enquanto desce lentamente até conseguir focalizar o motorista reduzindo de terceira para segunda marcha, com o braço direito sobre a alavanca de câmbio.
O diretor faz um corte na cena, para mostrar os olhos semiocultos atrás das lentes dos óculos de sol. Além da armação, é possível perceber que se trata de um adulto a caminho da meia idade, devido às rugas nas tangências de suas sobrancelhas.
Ele observa as palmeiras orientais na beira da estrada, intercaladas com grandes eucaliptos australianos. Somente no Brasil as palmeiras e eucaliptos convivem em paz. A sorte de tais árvores é que elas não conhecem as redes sociais, onde as diferenças são alimentadas por gente rancorosa e incapaz de reter apenas as boas memórias.
Os últimos dias do inverno permitem estas viagens sem destino e sem a preocupação de suar as roupas junto ao encosto de couro dos bancos do veículo. Rajadas de ventos laterais limpam a mente e abrem espaço para novos pensamentos, ampliando a capacidade de atenção aos menores detalhes da paisagem.
A velocidade é retomada. A terceira marcha é engatada e depois a quarta, após atingir o cume de uma elevação. No trecho da pista em declive vem a indicação de uma lombada, forçando a redução do ritmo. Após o segundo eixo passar pelo calombo do leito carroçável, uma pequena vila em torno de uma igrejinha se descortina na encruzilhada com uma estrada de terra.
Na esquina polvilhada com alguns casebres há um bar que também é uma mercearia. No canto da varanda o personagem sem nome avista um senhor de cabelos crespos e grisalhos, com pele escura e amarelada na região dos olhos sob uma testa tensionada. Sentado de pernas cruzadas numa cadeira de palha, combinando com a textura de seu chapéu, o velho traga seu cigarro.
Imediatamente o motorista lembra da última vez que degustou um charuto, sentindo novamente o ar aquecido em seus pulmões e a tranquilidade entorpecida que aquele gesto lhe oferecia. Ele sente vontade de estacionar o carro ali mesmo. E, mesmo sem ser fumante, sua vontade era pedir um trago emprestado.
Ele poderia ainda disputar uma partida de sinuca com outros dois roceiros, gastando suas tardes de sábado passando giz na ponta de seus tacos, alternando estouros em bolas coloridas com goles de cerveja gelada, que igualmente inundaram as papilas gustativas do observador - ainda que beber também não fosse um hábito.
A memória que veio em sua mente, feito um flashback, foi de estar com onze anos de idade no banco traseiro de um Fusca, com seu tio dirigindo a caminho de uma praia. A latinha de Skol dançava de mão em mão entre os ocupantes do carro - e um gole, apenas um gole, lhe fora concedido naquele dia, entre Caraguá e Ubatuba.
No batente da porta daquele bar, uma menina adolescente se encostava na parede, com as mãos para trás. Seu vestido de prenda revelava que um de seus pés estava recolhido junto ao joelho, plantado no reboco encardido daquelas paredes. Certamente o comércio deveria pertencer ao seu pai, encastelado no balcão, ou ela não estaria ali feito uma garçonete.
Nosso amigo tentou adivinhar o que ela estava pensando. Talvez nas colegas da escola, passando aquela tarde tomando sol numa piscina, enquanto ela tinha que trabalhar no meio daqueles bêbados. Seus olhos verdes se encontram com os olhos do protagonista, pois o veículo diferente lhe chamara a atenção. Seria ele um príncipe encantado a lhe salvar daquele fim de mundo? Não, não era.
Penduradas num portão de barras de ferro, duas mulheres param de conversar para encarar aquele estranho dirigindo devagar na frente das casas delas. Pela primeira vez naquele episódio o motorista desconhecido estava incomodado. Ele não estava fazendo nada de mais: apenas passando por ali.
Subitamente um automóvel lhe ultrapassa rasgando a sua dianteira. Ao seu volante, uma garota falando ao telefone celular. Não devia ter mais de 20 anos, a iludida. Passou pela segunda lombada sem frear, maltratando a suspensão do carro que sequer deveria ser dela. Algum progenitor ausente lhe permitiu guiar daquele jeito.
O conversível vermelho também passa pela segunda lombada, mas de modo bem mais suave, como que se desvencilhando dos lençóis daquele pequeno transe que havia acometido seu piloto. A velocidade novamente é retomada e aquele lugarejo lentamente vai ficando para trás, diminuindo no espelho retrovisor.
Olhando para frente, o homem de óculos escuros avista um trator transitando pelo acostamento. Ao contrário dele, alguém estava trabalhando naquele sábado preguiçoso. A câmera aos poucos vai se afastando deles, subindo novamente aos céus, carregada por um drone mudo, que não fazia qualquer ruído de insetos voadores. Novamente os laranjais aparecem na tela, que escurece lentamente, bem antes do sol se por.
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Que texto delicioso! Muito obrigado, Jean.
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