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terça-feira, 26 de março de 2024

Sobre dirigir um carro de madrugada

"Naquela ocasião, a lua cheia iluminou a janela traseira do veículo. No momento, passava a marcha quando começou a tocar "The man who sold the world". A chuva fina trazia um frio cortante para dentro da cabine."
"Naquela ocasião, a lua cheia iluminou a janela traseira do veículo. A chuva fina trazia um frio cortante para dentro da cabine."

Depois do quarto dia de uma onda de calor, as paredes da casa esquentam tanto que nem de madrugada elas se resfriam.

Também de madrugada a nossa vigília se converteu em consciência quando ouvimos um carro ainda longe, atritando seus pneus de borracha contra os remendos do asfalto da rua.

Quem está dirigindo nesse horário?

Vou até a cozinha tomar um copo d'água. Nem precisamos acender a luz, pois a companhia trocou as lâmpadas incandescentes dos postes por outras em LED.

Agora, na sala de estar, se não fechar a cortina, não dá para cochilar no sofá, onde os feixes de luz daquele carro que se aproxima nos aflora a lembrança de um tempo onde ouvíamos Nirvana no toca-fitas do velho Fusca azul.

Os amigos da faculdade organizaram uma festa numa chácara em Santa Bárbara D'Oeste, mas me senti deslocado. Nunca fui bom para me enturmar e fui embora mais cedo, mesmo com a insistência dos anfitriões para ficar.

No fundo, eu queria mesmo era dirigir meu carro, sozinho, no meio da noite, pela estrada quase deserta.

Naquela ocasião, a lua cheia iluminou a janela traseira do veículo. No momento, passava a marcha quando começou a tocar "The man who sold the world". A chuva fina trazia um frio cortante para dentro da cabine.

Só conseguia pensar que nunca venceria a minha timidez e dizer para aquela garota que faria tudo por ela. E algo me dizia que, cedo ou tarde, nunca mais a veria novamente.

Chegando na cidade, passei por um bairro residencial. Observava as casas e imaginava que haviam famílias dormindo ali. Quantos caras, como eu, encontraram garotas legais e se casaram com elas? Mas onde estaria a minha futura esposa?

Levaria anos para conhecê-la. Muito depois de fazer teatro amador para combater aquela timidez que eu sabia que deveria combater, até para sobreviver no mercado de trabalho.

Então, voltei para a cama. Passei pela porta do quarto da minha filha. Como ela consegue dormir com esse calor? Como ela é bonita... A espera valeu a pena.

Agora sou aquele pai de família.

Entretanto, antes de fechar os olhos novamente, sabia que parte de mim ainda estava naquele Fusca, correndo atrás de algo que nunca sei o que é. Talvez seja uma fome de viver intensamente.

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