domingo, 22 de abril de 2018

O último sobrevivente de uma guerra imaginária

O bravo soldado de plástico permanece sem nome.
O bravo soldado de plástico permanece sem nome.

Meu tio Gijo - Giggio para os italianos - trabalhava numa agência do Banco do Brasil no Ipiranga em São Paulo. As vezes ele nos visitava em Paulínia. Um dia ele trouxe um presente para nós: um saco transparente fechado com uma cartela dobrada ao meio, grampeada, contento um exército de soldadinhos de plástico de várias cores sortidas: vermelhos, azuis, amarelos, verdes, laranjas.

Logo eles foram postos num campo de treinamento, que ficava num vaso com folhagens no pequeno alpendre cercado por muretas acabadas com lajotinhas de cerâmica, onde as tias gaúchas sentavam juntas quando tomavam chimarrão.

Para brincar com os soldadinhos naquele vaso, eu me sentava no chão mesmo, com as nádegas sobre o pé esquerdo e o queixo apoiado no joelho direito. Deste modo meu campo de visão era bem alinhado com a escala daqueles homenzinhos destemidos.

Um dia os enviei para uma missão impossível, na grande floresta do jardim sob a sombra de um espinhoso pinheiro. Alguns deles jamais voltaram. Outros se perderam na mudança, quando meu pai vendeu a casa na Rua Lidia Giorge Vedovello e fomos morar provisoriamente numa edícula, na chácara onde seria construída uma casa bem maior.

Logo, as opções para batalhas ficaram bem maiores. As mais epopeicas foram travadas num monte de areia, que os pedreiros usavam para fazer a massa de assentamento dos tijolinhos de barro. Túneis eram cavados sob montanhas e trincheiras delimitavam os lados opostos de uma guerra interminável.

Ali, alguns soldados foram soterrados. Outros foram salvos pelas broncas que o empreiteiro João Sezarino nos dava, mandando a gente ir brincar em outro lugar. Talvez um ou outro combatente tenha sido levado por uma pá até a betoneira que fez o concreto da laje. Nunca saberemos.

Aos poucos, os soldadinhos remanescentes foram sendo esquecidos no fundo das gavetas ou nos bolsos de crianças que iam brincar lá em casa. Um a um foi sumindo para sempre.

Certa vez, procurando por outra coisa, encontrei um daqueles guerreiros. Ele estava seriamente ferido. Um monstro havia lhe queimado a base com uma bituca de cigarro. Seu pé esquerdo estava dilacerado e o cano de sua metralhadora havia sido cortado.

Que tipo de ser humano é capaz de fazer isso com um soldado de plástico? Terá sido ele torturado para contar algum segredo? O soldado nunca me disse nada, o que me leva a crer que ele morrerá honrando o juramento a sua pátria. O que fizeram com este combatente foi um crime de guerra e o que mais me revolta é que seu autor nunca será levado para julgamento em Nuremberg.

Depois de tantos anos de serviços bem prestados, precisava fazer algo por aquele soldado laranja. Com duas velas acesas, derreti um pouco de cera das mesmas e lhe recompus a base e o pé danificado, numa operação sem anestesia. Mesmo assim ele não esboçou qualquer sinal de dor. Aguentou firme sem gritar ou espernear. O bravíssimo sujeito - que era só de plástico e agora também é de cera - merecia ser condecorado.

Desde então não me separei mais dele. Mais um bocado de anos se passou e compreensivelmente ele foi para a reserva, sem no entanto abandonar suas armas.

Quando me casei, levei ele junto comigo para nossa nova casa. Lhe dei uma nova atividade: ser guardião da minha coleção de carrinhos de ferro, dispostos em nichos de MDF na parede do hall dos dormitórios.

As vezes passo por ele e lhe bato continência.

Se ainda tenho sonhos grandes para realizar, também ainda me apego a coisas pequenas, que só tem valor para mim. Mas com elas aprendo coisas nobres, como nunca deixar conscientemente um colega de combate para trás.

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4 comentários:

  1. Vim do Face e não consegui comentar lá... Ainda bem que não consegue parar de escrever, assim não ficamos sem os seus belos textos. Sucesso!

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    1. Fez bem em comentar por aqui caro Alexandre. É bom sair um pouco do Facebook. Grato pelo incentivo. Abraço!

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  2. Hoje, tenho muitos soldadinhos desses espalhados pela casa. Vira e mexe resgato um e o devolvo a sua caixa onde se mistura com os outros combatentes, todos num monocromático verde diferenciando-se em três tons.
    A lembrança de sua infância é a realidade dos meus filhos. Doces momentos.

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    1. Giu, nossas crianças possuem acesso a um universo muito mais amplo do que o nosso, em termos de recreação passiva, como jogos eletrônicos e vídeos em "espertofones".

      Mas em termos de recreação ativa, que trabalha com a imaginação, elas ainda dependem de tios que comprem soldadinhos de plástico ou casinhas de madeira.

      Que sejamos bons pais e tios para nossos filhos, neste sentido. Abraço!

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